sexta-feira, maio 01, 2009

Nas Últimas

Nas Últimas

Uma mulher de quarenta e cinco anos já sem qualquer esperança de mudar seu destino. Não iria ganhar na loteria, não iria caminhar aos sábados de manhã, nem sair para um happy hour no final de semana. Não decoraria seu apartamento, não levaria o cachorro ao veterinário. Não faria compras no shopping, não chamaria as amigas para seu chá de cozinha. Não veria seus traços na face rosada de seu filho, não iria às missas aos domingos. Não faria amor apaixonadamente, não provaria sushi pela primeira vez. Talvez nem pudesse ver os primeiros raios do amanhecer do dia seguinte.

Tudo por causa de um único momento em que perdera o controle. Um único momento de fúria e lá estava ela, há dois anos, a cada segundo, na espera pelo fim. Injeção letal por ter assassinado aquele monstro. Foi uma pena não ter provado que ele a violentava toda noite, que ele minava, a cada vez que entrava por aquela porta de madeira rachada, suas mais íntimas fantasias e sonhos. Ela estava agora a caminho da morte por ter livrado o mundo de uma maldição, de um castigo. E aceitava sua sina, afinal, o que alguém poderia fazer por uma alma tão pobre, tão à parte da sociedade?

Os restos de suas posses, que agora não passavam de uma folha de papel e uma caneta hidrocor vermelha, se encontravam em cima de sua cama. Passava horas desenhando paisagens de forma bem infantil, e naquele momento tentava criar uma casa escondida em meio às colinas iluminada pelo luar. O vermelho não condizia com a imagem que formava em sua mente. Aquele único passeio que fizera, há muito tempo, com seu amigo de infância, ainda estava ali, guardado por algum milagre. Conseguia até sentir o cheiro do orvalho se formando com o sereno da noite. Uma noite gélida, mas que talvez traduzisse o que, para ela, fosse a felicidade.

O céu cintilava, a poeira das estrelas parecia cair sobre suas cabeças. A lua em sua completude, a grama escura que roçava sua pele feito veludo, tudo estava perfeito. Jovem, ainda tinha o costume de cultivar esperanças de um dia poder fugir daquela cidade tão pequena, tão medíocre. As pessoas a olhavam com desconfiança, nojo e medo. O único que não a maltratava era Toninho, o menino seco que morava perto do buraco onde ela vivia. Ela praticamente obrigou-o a seguí-la, prometendo-lhe um pedaço de algo na janta. Juntos então admiravam aquela pintura noturna. Nem ao menos tinham noção do que seria arte, mas para os dois jovens tão humildes, aquela noite tão bem desenhada lhes deu tanta paz no coração e tanta alegria quanto uma pintura da mais fina expressão artística poderia oferecer aos olhos dos que a apreciam.

Agora não poderia mais deixar-se às divagações. O homem com as chaves da cela chegava, a passos lentos e pesados. Sabia o que viria a seguir, e mantinha em sua mente as sensações daquela linda noite de agosto. Poderia sentir o gosto das frutas silvestres que comeram durante toda a madrugada, da água gelada que tomaram do córrego que cortava as duas colinas verde-escuras. Sentia o cheiro da liberdade entrando pelas narinas enquanto o guarda algemava suas mãos. A cada passo, lembrava-se das risadas que deram ao perceberem que a noite acabava e estavam sozinhos ainda. Que viviam aquele momento, que nada ali lhes faria mal. Sentou-se naquela cadeira fria lembrando das estrelas cadentes que viu e dos pedidos em vão. E com um sorriso em sua face tão marcada pelas amarguras da vida, relembrou os primeiros raios de sol que a aqueceram na mais perfeita noite que já teve, e deixou-se levar pelo destino.