terça-feira, janeiro 05, 2010

O sopro do vento de inverno


   Aquela com certeza era uma tarde de inverno. Um vento congelante cortou sua face, seus olhos estavam vermelhos e as pálpebras se apertavam para que a rajada não trouxesse algum grão de areia. Ele não apreciava o tempo frio, na verdade detestava esse período do ano, quando apenas via mantas, cachecóis e tecidos grossos com um par de olhos andando pelas ruas. O banho, o amanhecer, as noites, tudo lhe parecia desconfortável, e até costumes habituais tornavam-se quase que impraticáveis. Havia alguns ganhos, como o vinho perto da lareira e o café com charuto, que até melhoravam com o frio intenso. Mas isso, para ele nada era se comparado à sua roupa leve, ao malte gelado, ao sol convidativo de uma tarde entre amigos. Um bom mergulho, um beijo salgado pelo mar. Não nascera no inverno, e desde essa época, odiava-o.


   Nesse momento, o problema, entretanto, era a noite. A sopa, o vinho, o café o confortavam até alguns minutos antes de deitar-se. Mas ao sentir a cama fria, ele amaldiçoava a estação, principalmente por não ter uma boa companhia. Pensava ele que as noites eram demasiadamente longas, e poderiam ser melhor aproveitadas. Como não conseguia dormir, levantava-se e caminhava entre os cômodos de sua mansão, degustando seu fumo levemente adocicado. Abria as janelas e admirava o breu estrelado, a lua e os estranhos visitantes noturnos que insistiam em acasalar-se em seu teto. A solidão não era sua inimiga, mas ao juntar-se ao clima invernal, quase pareciam amantes, e em nenhuma hipótese essa comunhão lhe daria algum prazer, ao contrário, o fazia pensar em praticar seu lado mais libidinoso, cometer alguma loucura como nos tempos de sua juventude, tanta volúpia e tanto desejo transbordavam de sua pele a ponto de ser sentenciado a queimar-se no inferno. Era sim, no inferno, no calor de suas chamas, na punição de seus crimes, na satisfação de poder sentir o flamejar de sua pele que ele pensava nesse momento. Sim, porque ele poderia, para chegar ao seu paraíso, abusar dos prazeres do mundo. Ah, os prazeres da carne, como seria bom deitar-se e tocar uma pele tão macia quanto o feltro, quanto o veludo azul de sua cortina.


   Porém, deixou de pensar em tantos disparates. Não seria assim que sairia de sua fria situação. Procurou estabelecer bom senso em seus pensamentos. Lembrou-se da caneca que esquentava junto ao fogo e foi buscá-la. Na ida, a pilastra sinuosa que se encontrava perto da lareira, com seu jogo de sombras e movimentos do fogo, lembrou-lhe, por um instante, o colo de uma bela dançarina do estabelecimento que frequentava quando mais moço. Já fazia algum tempo, nem mais sabia o nome da night girl. Mas o corpo não saia de sua cabeça, que já estava aquecida pelo fogo da lareira, enquanto seu coração permanecia tão gélido quanto os flocos que caiam na sacada. Pieguices... quanta bobagem ele pensava naquela casa, naquelas horas tão congelantes que paravam o movimento dos ponteiros. Ficar só, naquela época, só poderia ser um castigo divino. E ele não acreditava em Deus.



    Cinquenta anos. Em todos esses anos seu corpo desfrutara de todos os prazeres físicos. Muitas mulheres, muita bebida, muitos charutos, muito dinheiro! Esbanjava, caçoava, magoava. Na ordem, todo o dinheiro, fruto não de seu trabalho, mas do trabalho de seu pai – que Deus o tenha! – havia sido gasto de todas as formas: pagava rodadas aos amigos, - estes que, naquele momento, estavam brincando de cavalinho com os netos – comprava sempre o melhor vinho, o melhor champanhe, os charutos , claro, cubanos. As roupas, todas sob encomenda, com os toques mais refinados. Terminava suas noitadas sempre com duas mulheres; uma para cada interesse, ou para cada fantasia. Bons tempos aqueles.


   Mas, agora, somente sobrou-lhe o fogo da lareira e os sonhos com os dias quentes. Não que o dinheiro tivesse acabado; não, ainda teria mais, até o fim de seus dias. Ele achava que poderia ser logo, não saía mais de sua casa. Mas as lembranças não morriam, ele queria afastá-las, mas elas não paravam de visitá-lo. Na hora em que acordava, na hora que comia, na hora que lia. Mas, principalmente, na hora em que a tarde se ia e a noite chegava. Nesse momento, todas as lembranças lhe castigavam. Alguém já dizia que lembrar é viver, ou reviver; ou se não pode vencer algo, renuncie. Isso já era demais, e para ele nenhum ditado otimista – ou qualquer filosofia parecida com a de um seguidor de Zenão de Cício – não era nada além de auto-ajuda. O homem pode alcançar a sabedoria se harmonizar sua racionalidade com a natureza... mas que piegas.


   A noite, fria, chega batendo na janela. O vento uivava. Suas mãos estavam gélidas, assim como seus pés. Um cobertor xadrez, o fogo estalando na lareira. E o sono, que levava suas lembranças embora, para no dia seguinte a consciência trazê-las novamente, dava boa noite ao velho conquistador.