domingo, dezembro 28, 2008

O Cemitério Particular

O Cemitério Particular

Cinco deles estavam na sala, que era suja e cheirava a ratos e comida podre. Nas paredes, um papel amarelado. Poderiam ser vistas algumas flores já sem cor estampadas naquele material tão velho e gasto e os móveis teriam algum valor se estivessem em bom estado, pois eram relíquias de quase dois séculos. Mas os cinco não queriam luxo algum. Aliás, aquele lugar era ideal, pois ninguém mais visitava a velha mansão desde que os últimos inquilinos se mudaram. Fazia já algum tempo.

Riam muito os cinco. Um era bem cabeludo, com olhos já perdidos. Os outros pareciam muito entre si, cabelos ensebados e roupas rotas. Acenderam um e outro baseado para dar início à noite, contavam piadas sem graça, riam. Os quartos vazios ecoavam os risos e muitas vezes os cinco pensaram ter ouvido sons diferentes, e deveriam ter prestado mais atenção.

Picos de agulha. Silêncios cortados por suspiros e gemidos. Os cinco viam vultos por entre as formas criadas pela fogueira improvisada, mas a crença e a espera pelas alucinações substituíam qualquer temor. Um vento gélido acariciou-lhes a face, mas eles não sentiram nada. Num determinado instante, não sabiam qual, pois o tempo não era medido em segundos, minutos ou horas, algo mudou. O quarto ainda continuava o mesmo, entretanto. Os cinco se deram conta de que alguém os vigiava, e não tinha boas intenções. Quiseram pegar suas coisas e sair, porém, no estado em que estavam parecia impossível qualquer movimento.
O quarto não era mais o mesmo. Os risos despertaram os residentes da mansão, o que não acontecia há décadas. Os espíritos de pessoas gananciosas demais para se desfazerem de seus bens passeavam entre os rapazes, que agora sentiam suas presenças. As sombras do quarto se tornavam cada vez mais macabras, ora distorcidas, ora demoníacas demais. A sensação dos viventes era comparável à de um gelo passeando pelos espaços entre as costelas. Num ímpeto, um deles se levanta e é seguido pelos outros quatro. Caminham sem rumo, o medo já os impedia de correr, precisavam escorar-se nas paredes que agora eram frias e cheiravam a carne podre.
Chegam todos juntos a um outro cômodo, uma sala aparentemente. Se antes o sentimento era de medo, agora tratava-se de desconsolo e tristeza. Seus corações batiam freneticamente, não conseguiram dar três passos em direção aos móveis que ali existiam, saíram imediatamente de lá e caminharam, juntos, ao quintal da mansão. Andavam de mãos dadas e um deles chorava, pensando em sua casa e em sua mãe. Todos os outros quatro pensavam na morte.
O quintal se enchia dos sons de morcegos e pássaros noturnos. Mas isto não era o pior. Mal tiveram tempo para avaliar o lugar, descobriram lápides e um arco onde se lia a palavra "Zoo" em metal enferrujado. A paisagem desoladora incluía algumas árvores secas, muito mato rasteiro e outros sinais de abandono. Era um grande mausoléu. Mas uma lápide em especial se destacava das demais, era enorme, e parecia haver ao lado desta um grande buraco. Automaticamente, os cinco se dirigiram até lá, seus pés se moviam, mas seus corpos eram puro concreto. Chegaram perto, todavia, não tiveram tempo para nada dizer ou fazer, já que um grande animal se aproximava. Não parecia ser um lobo, não parecia ser um gato, seus olhos faíscavam e seus dentes se preparavam para atacar a qualquer momento. O animal era guiado por alguns dos espíritos. Ninguém disse nada, ninguém gritou, apenas o que se ouvia era o som que o animal emitia, que não era identificável.
O buraco agora havia aumentado. Os cinco não tinham outra saída, e outros animais iguais ao primeiro se aproximavam. Não se sabe se eles caíram no grande halo ou se estavam alucinados demais. Os cinco acordaram no primeiro quarto, a fogueira apagada. Obviamente, da mansão saíram, aos gritos. Um único riso se ouvia, ao longe, enquanto os amigos dobravam a esquina daquela mansão tão antiga quanto a própria cidade em que viviam. Era um riso apenas.

domingo, dezembro 21, 2008

Sobre Caixas e Descarregos

Sobre caixas e descarregos

Queria poder encontrar um meio mais fácil de encarar a realidade que parecia ter dentes mais afiados a cada segundo que se passava. No quarto, agora, só os pôsteres colados há décadas atrás, de bandas que já não mais existem. Abriu seu diário: quanta bobagem! Como os adolescentes são mesquinhos e egocêntricos, pensou. Se fosse levar a sério todas aquelas reclamações, qualquer um acreditaria que ele teria sido o rapaz mais infeliz do mundo. Não poderia equiparar sua juventude tão complicada e paradoxalmente tão simples à vida que levava agora. Era feliz naqueles tempos, mas não conseguia ver... é, os hormônios talvez nos ceguem também.

O pior ainda estaria por vir. Arrumar a papelada toda, reencontrar aquela gente. Adentrou o quarto, começou a encaixotar seus pertences. Nada daquilo serviria pra muita coisa, mas deixar tudo lá, às traças, seria errado. Não queria também que o próximo morador da casa tivesse qualquer impressão sobre ele, afinal, ninguém o conhecia de verdade. Nem ele mesmo saberia dizer quem era. Muitos foram os que tentaram levá-lo à terapia, ou melhor, psicoterapia, mas não acreditava nisso. Quando queria desabafar um pouco, seu cachorro Lex era todo ouvidos. O cão, sempre sentado, com as orelhas baixas, parecia, às vezes, aconselhá-lo: "Que tal se você fosse até lá e lhe contasse tudo isso que me disse? Acredito que toda a situação se resolveria rapidamente. Ah, mas eu havia me esquecido... você é um covarde!"

O último carrinho na caixa. O último sinal de que um dia havia vida naquele quarto. Um último suspiro e então ele se dirigiu à porta. Deu uma última olhada, respirou aliviado e fechou-a. Desceu as escadas pensando no dia difícil que teria pela frente. Papéis, pessoas medíocres. Entrou no carro e deixou as caixas no banco de trás. Não olhou mais para elas. Queria apenas dirigir e pensar um pouco no que iria fazer a partir dali, mas nenhum pensamento lhe vinha à mente. Apenas uma sensação de desesperança e medo. Mas, o que cargas d'agua faria com tudo aquilo? Parou o carro e olhou para trás novamente, encarando as caixas. Não faria sentido carregar mais peso, pensou. Virou-se para frente, no espelho retrovisor fitou seus olhos por um momento e ele então encontrou um jeito de descarregar-se. Seguiu até a ponte do rio que cortava a cidade, chamado de Rio das Almas, sentindo-se cada vez mais leve. Desceu do carro, pegou as caixas e jogou-as sem nem ao menos olhar para trás. Apenas jogou as caixas. E assim seguiu seu caminho, e sabia que muito ainda tinha que ser feito. Muitas outras caixas deveriam ser jogadas no Rio das Almas...

sábado, novembro 15, 2008

Parênteses

Só um parênteses

Engraçado... sinto-me como o personagem de uma estória que li e que adoro. Contava sobre a triste sina de um escritor que cometera um grande equívoco: escravizou uma musa grega para que ela o enchesse de idéias. Escreveu muitos livros, todos fantásticos. Mas essa musa fora, em outros tempos, a esposa do Senhor dos Sonhos. E este a vinga, retirando-a do poder do escritor e, como castigo, condenara-o a ter idéias a todo tempo, e eram tantas, tão boas, que ele acabou por mutilar suas próprias mãos: era imperativo que conseguisse registrar o máximo de idéias possível. Então, passou a escrevê-las com os dedos. A sangue.
Bom, é como eu disse. Muitas idéias... mas ao me sentar em frente ao computador, enfrentar essa tela branca, nada acontece. Ansiedade demais. Medo demais.
Não farei o balanço deste ano. Posso dizer, isso sim, que foi um bom ano: renasci como uma fênix. Reencontrei-me. Agora sei exatamente quem sou e o que quero, mas principalmente, o que não quero. Aprendi muito. Obrigada, Destino, pelos caminhos tortuosos de seu labirinto.

sexta-feira, novembro 07, 2008

Curto e Grosso

Curto e Grosso

Os novos tempos requerem muita paciência. Você quer se matar aos poucos, sentir-se vivo, à vontade, mas até mesmo essa escolha tiraram de você. O amor virou novela, a injustiça em todos os níveis se tornou a pílula que tomamos todos os dias para que não nos tornemos loucos. Sim, porque a vontade de fazer justiça acaba levando à loucura. A paciência se tornou o nosso ópio. Seja natural... faça de conta que é a morena do comercial ou o galã burro.
Tempo, que se esvai como areia entre os dedos, a mesma areia que nos faz adormecer. Pelo menos alguns de nós, em nossos sonhos, conseguimos tornar a vida menos amarga. Por que o café da bomboniere parece ser transgênico, o sol escaldante demais, a comida não tem mais gosto algum e as noites não têm mais estrelas? Não somos mais os mesmos, os novos tempos nos tornaram seres confusos. Agora respiramos a fumaça dos carros, símbolos de poder. Agora desejamos uma falsa paz, uma paz comprada pelo bem-estar das televisões lcds, dos ipods, dos laptops e iphones. O homem das cavernas evoluiu, afinal... agora somos os novos homens. Podemos criar um robô que faça tudo, podemos viajar pra Lua, podemos... podemos. Hoje muitos preferem as mentiras. Mentir é mais fácil. Enganar-se. Fugir. Para bem longe, para outra cidade, uma cidade igual àquela do novo filme que estreou na semana passada.
Cuspa para fora o fel que cobre seu coração... abra seus olhos, deixe-os abertos, use palitos se necessário. Não ignore seus sentidos mais primitivos. Falte um dia no trabalho. Não deixe os novos tempos embrutecerem sua alma, não se deixe voltar à caverna escura. Pois, a partir de agora, tudo indica que nos tornaremos canibais... acabaremos nos devorando. Darwinismo puro. O mais forte sobreviverá.

quarta-feira, outubro 29, 2008

A Última Criança
Em que ano estavam nem eles mesmo sabiam. O tempo não era mais medido por calendários, mas pela pele que se enrugava, as crianças que cresciam, os idosos que morriam. Aliás, não nasciam mais crianças já há algum tempo. Parecia que a era do homem finalmente se acabava. Lá fora, as tempestades torciam as poucas árvores que ainda restaram. No dia anterior, o ar estava tão seco e os ventos tão cortantes que seus olhos se encheram de areia. Estavam hoje com chumaços para aplacar a vermelhidão. Talvez pudessem até estar cegos.

Tempos muito difíceis. Não era fácil comer, nem beber, nem andar ou se abrigar. O relógio da humanidade pareceu voltar: os que restaram se reuniam em grupos para sobreviver, em cavernas, como nossos primitivos antecessores. Mas a evolução humana do final do século XXV não contava com isso. Não contava com o descaso do homem, com sua ambição. A destruição foi paulatinamente arquitetada. O planeta sobreviveu, claro.

Agora nem se reproduziam mais. A última geração de homens tinha entre sete anos, vestiam roupas encontradas nos grandes lixões. O lixo humano era a única coisa que tinham, isso e as cavernas. Incrível a força das chuvas torrenciais. Depois de uma tempestade não era possível nem reconhecer o local atingido. O grupo conseguira encontrar, no topo de uma montanha, um local seguro. Abaixo desta, o que antes era uma cidade. Agora era um lugar fantasmagórico. Restos de construções mostravam que os antigos moradores viveram lá os tempos de ouro da civilização pós-moderna. Não parecia real. Os mais antigos do grupo contavam histórias verídicas que mais pareciam fábulas.

Mas o pior não eram as chuvas... havia os ciclos de seca. Ventos e areia. (continua)

domingo, outubro 19, 2008

Sobre formigas e escritas

Não comia há dois dias. Um mês inteiro se alimentando mal deveria mesmo terminar nisso. O problema não era tanto o mal estar físico, porém, a dor de estômago piorava progressivamente. Era o vazio.
Seu trabalho era baseado em repetições. Às vezes só ponderava sobre a possibilidade de estar ficando louca, outras vezes tinha certeza disso. Mas levava a vida, na medida do possível, normalmente. Nunca deixou transparecer a ninguém que aquela rotina lhe despertava tendências ao suicídio, idéias malucas que incluíam tanto comprimidos quanto fluídos de freio.
Sua maior distração era escrever. Isso ela fazia com prazer, apesar de detestar tudo o que escrevia. Não tinha pretensões. Queria apenas expressar e exteriorizar alguns de seus pensamentos, pois, se não o fizesse, sentiria que sua cabeça explodiria. E com quase a mesma urgência de uma necessidade fisiológica. Ela evacuava pensamentos.
Dessa vez não conseguia. Ou não os tinha, ou os tinha em demasia e assim encontrava dificuldade em focá-los. Procurou caneta e papel e, só para tentar mais uma vez, começou a escrever. Queria fazer uma analogia, mas nada lhe vinha em mente. Ao olhar em volta, percebeu que uma formiga tentava carregar uma migalha de pão. Pronto! Escreveria sobre as formigas e sua capacidade física. A analogia: precisava pensar em algo que unisse a idéia de carregar seu próprio peso e carregar o peso de uma vida. Eis que o vazio novamente lhe corrói as entranhas e nenhuma palavra se encaixa. O estômago parece ter sido rasgado ao meio.
Duas colheres de leite de magnésia e algumas páginas de jornal. Lia sobre política nacional, sobre problemas na economia. Leu seu horóscopo e algumas tirinhas, mas não acreditou nem nas previsões e nem nas piadas. Sentiu-se mal, uma náusea persistente: mas não era, como ela queria, o indício da gestação de uma grande idéia que preencheria aquele vazio existencial. Este, ao que tudo indicava, perduraria pelo resto de sua vida. O que a náusea indicava era que ela não apenas iria carregar o peso de sua própria existência, mas também o de uma vida.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Não Mais do Mesmo

A espera fazia parte da rotina. Enquanto esperava, acendia mais um cigarro. O ônibus não chegaria enquanto não acendesse o segundo, essa era sua única crença. Dali a alguns minutos a espera chegaria ao fim e mais uma vez tudo seria igual. Muito igual. E não tardou. Lá estava, subindo a rua, o velho ônibus fretado de sempre.

A terceira poltrona do lado da janela era praticamente sua. Sentou-se, fechou as cortinas vermelhas e tentou cochilar. Os raios solares acabavam de aparecer no horizonte... mais um amanhecer, como todos os outros. Não queria saber. O sol que cumprisse sua função, assim como ele. Todos eram obrigados a desempenhar suas funções, era a lei da selva de pedra. Havia perdido a capacidade de enxergar qualquer poesia à sua volta. Anos de experiência...

Mais uma parada, dessa vez, brusca. Com a freada, despertou de seus devaneios. Quase perdeu a paciência, mas deixou estar. Não lembrava de haver ponto de ônibus naquele local, era um descampado, no meio da estrada. Ouviu um agradecimento e pedidos de desculpa intermináveis. Voz feminina, jovem, desinibida. Resolveu esperar para ver quem era e, por algum acaso, se é que isso existe, ela se sentou ao seu lado. Não gostava muito de dividir seu espaço, mas naquele momento não se sentia incomodado. Cheiro de shampoo e cigarro. Respirou fundo e deu um meio sorriso, de canto de boca.

Não ousou conversar com a moça, assim como ela também não se atreveu. Desconhecidos não precisavam manter qualquer tipo de contato, no máximo um cumprimento, apenas formalidade. Refletiu um minuto... viver talvez tenha se tornado mera formalidade. Teria ele se tornado um robô, uma ferramenta de trabalho, como todos aqueles sentados em suas poltronas, apáticos, ocos? Sua companhia parecia destoar... pensou a respeito. Nova funcionária? Quem seria ela? O discurso estava formulado em sua mente, iria esclarecer o mistério. Mas as palavras não adquiriam forma... ficaram todas presas em sua garganta.

Sua cabeça estava ereta, olhava para frente, porém, sua vontade era de virar-se. Desejava, por algum motivo, guardar as feições daquele rosto. Não virou-se nem por um segundo. Sabia que ela era loira e que usava tênis allstar verdes, pois poderia vê-los sem nem se mexer muito. Num movimento ela se levantou. O quê? Seria por causa dele? Ele estaria importunando-a? Para sua felicidade momentânea, conseguiu visualizar seu perfil e seus cabelos dourados chegando às costas. Ouvira seu pedido ao motorista, novamente entre sorrisos e agradecimentos. Ela desceria no próximo ponto.

Era um desses momentos em que não se sabe como agir. Ele não soube. Ela desceu. O ônibus seguiu, e em poucos minutos chegou à firma. Ele continuou sua rotina, fez sua hora de almoço. Ao entardecer, tomou o mesmo ônibus de volta, e seu coração bateu descompassadamente no trecho em que a moça havia descido; ele nunca mais a viu. Mas o amanhecer, a partir daquele fatídico dia, era uma esperança a mais. Afinal, outro amanhecer daqueles poderia se repetir, um dia, talvez.

terça-feira, setembro 23, 2008

O Andarilho, o Monge e a Catedral

O Andarilho, o Monge e a Catedral

Crispim caminhava lentamente em direção àquela catedral. Não havia mais nada a fazer, senão caminhar. Há algum tempo já não encontrava um próposito para continuar a viver, sua vida tornara-se tão vazia quanto a construção milenar onde entrava naquele momento. As paredes antigas ecoavam seus passos, os vitrais outrora coloridos e vivos transformaram-se em figuras incompreensíveis que, ao invés de encantar, agora cortavam facilmente quem as tocasse.A monumental arquitetura não mais deslumbrava, e sim amedrontava quem ousasse lá entrar. Mas Crispim não tinha medo, pois havia procurado um sentido em todos os lugares e em nenhum achara. Restava apenas a catedral, conselho de um viajante sem rumo com quem encontrou-se ao mendigar.

Crispim acreditava que era aquele lugar inóspito, sem vival alma com quem pudesse discutir a respeito da inexistência de Deus, o que se tornaria uma ironia, por ele mesmo estar numa casa divina. Porém, arrastando suas sandálias já bem gastas, o andarilho sentiu-se acompanhado. Avistou um monge, de barbas compridas e brancas, olhos envoltos numa serenidade quase desumana. Pasmo, Crispim pensou em deixar o recinto, tão enfadonho se tornou seu ânimo para conversas. Com apenas um olhar, no entanto, o monge aparentemente o convencera a ficar. Chegou perto, pousou sua mão delicadamente no ombro esquerdo de Crispim. Sua mão não pesava, era uma pluma, e parecia querer tirar o peso que o pobre perdido carregava. A partir disso, Crispim chorou e desatou a contar ao monge todas suas desilusões, blasfemou muito também, e afirmou que nada fazia sentido, pois estava oco por dentro. O monge, ao final do desabafo, sorriu. Perguntou a Crispim se este via ou ouvia as multidões de dentro da catedral. Este, incrédulo, respondeu que não havia mais ninguém ali, exceto ambos. Insinuou estar o sábio com problemas de discernimento, e então ouviu, pela primeira vez, a voz suave e forte ao mesmo tempo lhe explicar sua visão sobre o real sentido da vida:

"Jovem, há aqui multidões de anjos que contemplam, todos os dias, a magnitude divina. Eu mesmo posso afirmar isso, pois os ouço e junto minha voz às deles, pois acredito que, além do corpo, somos almas em busca de amor. E o maior amor de todos está muito além de paredes, de vitrais, de sandálias, roupas ou corpos. Basta sentir, no fundo de seu coração, o seu chamado".

Crispim fechou os olhos. Tocando o chão batido da catedral, parecia entender o que o monge queria dizer, pois o tempo, tão infinito, vibrava, o fazia tremer. O tempo, tão antigo, parecia lhe falar através daquele chão. Entendera que procurava na imensidão da terra material algo que já estava ali dentro dele mesmo, esperando. E então ele reconstruiu sua catedral, começando pelos alicerces, e agradeceu ao monge apenas com um olhar e um sorriso.

sábado, agosto 16, 2008

Brainstorm

Brainstorm

Engraçado ter trinta anos. Parece, à primeira vista, algo distante aos mais jovens e nostálgico aos mais velhos. Só o que posso dizer é: procuro viver os trinta... apesar de não acreditar que cheguei à alcunha de balzaquiana, se olho para trás, a impressão é de que vivi mesmo três décadas. Quando eu tinha 12 anos, pensava que com trinta seria uma mulher feita, com emprego estável, carro, casa, família. Uma imagem de sucesso profissional e afetivo, claro. Estranho demais ver que nada mudou muito nos últimos sete anos. Parece que parei nos vinte e três. Acabo não acreditando...

Isso na verdade não é ruim. E nem me refiro à aparência; não tenho medo de envelhecer, procuro me dar bem com o espelho... que as rugas cheguem em sua hora. A questão central de minha descrença é justamente minha situação atual: vivo correndo de lá pra cá, como no começo da carreira; não consegui juntar uma grana bacana e comprar meu veículo próprio (quanto mais a casa) e não tenho cara de mulher feita! Me sinto frustrada, de certa forma, porque tenho medo de que a menininha ruiva que mora dentro de mim não esteja satisfeita com o que encontrou ao bater a marca dos trinta... eu, pessoalmente, amo muito essa menina-mulher que me tornei.

Não sinto falta de nada. Tenho minhas experiências passadas, ricas e intensas... tenho uma personalidade, uma família que me ama, uma profissão que já tentei (pelo dinheiro) trocar, mas que hoje é fundamental para manter meu equilíbrio - se eu deixasse de dar aulas, acho que enlouqueceria. Não reclamo de nada mesmo. Se a felicidade pode ser definida, acredito que deva ser algo parecido com isso que descrevi. Você se sentir confortável com o momento de sua vida, com as pessoas que participam de sua vida, com suas experiências de vida, com seu estilo de vida. Minha vida é uma boa vida.

Problemas eu tenho sim... às vezes até caio em tentação e penso em desistir de tudo. Mas, a esta altura, algo aprendi: tudo se resolve. Tudo, menos a morte. Pode ser rápido, pode demorar anos, mas tudo se resolve... o importante é manter seu equilíbrio e confiar, acreditar mesmo. Coisas que aconteceram há oito anos, por exemplo, me pareciam o fim do mundo. Outros problemas que rolaram há três me tornaram uma pessoa triste, depre mesmo. Hoje aprendi que devemos nos desapegar dos problemas. Tem gente que gosta de bater a cabeça na parede. Eu não. Nunca mais.

Acabei caindo na auto-ajuda. Desculpem-me!! Não era bem essa a minha intenção. Mas como cheguei até aqui e não estou com coragem de apagar tudo, fica o texto. Uma verdadeira brainstorm...

sábado, abril 12, 2008

Do Tempo da Inocência

Do tempo da inocência

Berê era só alegria por fora, mas por dentro estava com o coração na mão. Tentava afastar os pensamentos ruins com um sorriso bem largo, de orelha a orelha. Estava numa das festas anuais realizadas pela equipe do trabalho, e por mais que quisesse, não conseguia se desprender de certas lembranças que a atormentavam como latejantes dores de cabeça. Lá pelas tantas, resolveu que iria tentar, pelo menos. Abriu então uma latinha de cerveja. Depois outra. Já se sentia melhor.

A partir daí Berê já não sentia mais a dor das lembranças, muito pelo contrário. Agora era ela mesma, leve, sem qualquer peso a arrastando para o fundo de seu oceano de culpas. Sentou-se numa rodinha de saudosistas da década de setenta, trocou idéias a respeito de música brasileira com uma colega de trabalho, arriscou alguns passos na pista de dança. O melhor da noite foi mesmo a hora de ir embora. Mas antes disso ainda riu muito, e também fez outros rirem. Pensou que, talvez, ela mesma estivesse complicando sua vida... era muito querida por todos e não havia motivos para tanto aperto, tanta aflição, tanta melancolia.

Berê viraria uma abóbora às nove. Precisava sair correndo, teria ainda que tomar dois ônibus para chegar à sua casa e já era hora. Mas estava com muito medo da solidão, das ruas vazias, dos mal encarados. Decidiu perguntar a uma de suas amigas, Lah, se ela poderia acompanhá-la até o ponto; J.J., ouvindo o pedido de Berê, com um grande abraço confirmou que também iria. Saíam então os três a caminho, só que mais gente se juntou à romaria:Pat, Elvis e Érico. Agora estavam em seis, e Berê se sentiu, pela primeira vez em anos, alguém especial. Não somente pelo fato de estar acompanhada, mas por ser amiga de pessoas que cultivavam a inocência e a amizade verdadeira, que é aquela que dura a vida toda. Ela sabia disso, sentia isso. E pedira por isso a vida toda.

Ao chegar em casa relembrou cada pedacinho de tempo daquela noite, e quem a tivesse visto naquele momento não entenderia o porquê de seu sorriso tão insistente. Só ela mesma, que percebera o quão simples é a felicidade.

segunda-feira, março 31, 2008

As Flores do Caminho

As flores do caminho

Rezava, chorava, se atormentava. Heloísa começava a perder a noção de tempo e espaço. Parecia que nada fazia sentido, que o sol brilhante e quente já não a aquecia ou a iluminava como antes. Que o mistério da lua, antes tão instigante para ela, já não existia mais. Que as flores coloridas mereciam morrer secas e que o perfume delas se esvaísse pelo ar, perdendo-se nas nuvens negras de fumaça. Que motivos teria Heloísa para se tornar tão triste? Se perguntássemos a ela, nem a própria conseguiria responder. Acúmulo de tristezas, talvez.

Houve um dia em que suas esperanças escaparam da caixa. Tudo o que ela temia acontecer acabou acontecendo. Perdeu sua vontade. Perdeu as forças. Viu-se perdida num mundo escuro, tão escuro quanto um filme de Tim Burton. Estava sim sozinha, mas isso não fazia diferença, o pior de tudo era sentir-se perdida. Não se reconhecia mais, nem aos outros. Esse poderia ser o fim para Heloísa. Mas não foi, e graças às flores de seu lindo jardim.

Havia plantado algumas belas flores num jardim que antes era abandonado. Cuidava delas já fazia tempo. Pareciam ter personalidade, as danadas. Quando Heloísa estava feliz com alguma coisa, as flores exalavam ainda mais os seus perfumes e abriam as pétalas, parecendo querer abraçar sua jardineira. Ao contrário, quando Heloísa aparecia no jardim cabisbaixa, lá estavam as flores, todas com um ar melancólico. Havia dias em que, à sombra de uma ruga de preocupação, suas queridas flores, com tanta dedicação, faziam retornar seu belo sorriso. As flores de Heloísa eram mesmo especiais.

Voltando à triste sina de Heloísa, estava ela no fundo do poço. Ou melhor, na lama do fundo do poço. Até que, numa crise emocional, ela se levantou de seu sofá, pegou uma pá e dirigiu-se ao jardim. Queria se desfazer das flores, e como era só ela quem cuidava das coitadinhas, e sem sua força de vontade e alegria todas as margaridas, girassóis, rosas, orquídeas e violetas iriam morrer de qualquer jeito mesmo, foi até lá para encurtar o sofrimento das pobres.

Antes de iniciar o genocídio das flores, Heloísa rezou, pedindo para que a natureza a perdoasse. O sol estava forte e a pá brilhava ainda mais, o que deu à ferramenta um certo ar de foice. As pequenas borboletas da primavera faziam visita às margaridas, uma joaninha se aninhava nos pistilos de um dos girassóis, o mais velho. Uma abelha incomodava com seu zunido algumas violetas, e as orquídeas talvez estivessem queixando-se de sede, pois Heloísa passara dias sem uma única visita. Estavam todas as flores felizes em vê-la, mas também pareciam saber das intenções da jardineira, que pegou então sua pá. O sol, no mesmo momento, se escondeu. Nuvens cinzas de chuva apareceram em questão de segundos, e uma garoa caiu. Uma garoa tão fininha e fresca que, mesmo com o sol escondido, nem os girassóis se encurvaram, pois queriam também sentir aqueles pinguinhos de chuva gelados. E Heloísa deixou-se molhar. O cheiro do chão úmido a fez voltar ao tempo de criança. As flores, se tivessem como, estariam rindo, gargalhando. E a pá, então, foi esquecida.

Hoje Heloísa está lá, em seu jardim. Plantou mais flores, adubou a terra. Algumas crianças costumam brincar de esconde-esconde atrás das moitas de azálea, e os insetos levam as sementes para todo lugar. É possível ver um broto de rosas nascendo pelas redondezas do jardim, nas casas vizinhas. Todos do bairro sabem que, se não fossem as flores e Heloísa, talvez uma das pracinhas mais lindas da cidade não existisse. E Heloísa sabe que, pelas suas flores, todo dia seus olhos abrem e ela segue seu destino, sem pensar, sem se perder pelo caminho das flores.

terça-feira, março 25, 2008

Quem brinca com fogo, com fogo se queima

Quem brinca com fogo, com fogo se queima

Seu nome era João. O dela era Teresa. Casados há vinte anos, a rotina tomara conta de suas não tão regradas vidas. Teresa era dona-de-casa, João um comerciante. Tinham uma padaria, medíocre, é verdade, mas nunca lhes faltava pão. Literalmente.
Sempre que podiam, saíam os dois juntos, de mãos dadas. Bebiam juntos uma cervejinha, no final da tarde. Brigavam muito, pois João não pensava em outra coisa a não ser na padaria. Porém, há dias, Teresa se sentia isolada. Sentia-se invisível aos olhos de João. Por muitas noites, chorou sozinha. Queria ser muito mais que sua companheira. Queria ser a luz da vida de João, e sabia que isso nunca aconteceria. Era questão de tempo para que os dois se apartassem, mas mesmo assim, ela tentava.
Teresa caiu numa depressão. Estava no fundo do poço. Encontrou algumas cartas no fundo do armário de sapatos assinadas por uma outra mulher. Eram cartas de amor, em que Teresa era massacrada. Ela era a causa dos fracassos do marido, segundo a outra. Esta prometia ao seu amante que, assim que ele pedisse a separação, viveriam o paraíso. Ela o encheria de amor, e juntos teriam filhos, teriam paz. Teresa, como sempre, sofria calada. Quando João chegou da padaria naquela noite, Teresa se resignou e nada mais fez. Não limpou mais a casa. Não tomou mais banho. Não queria mais conversar. Nem comida ela fez. Se ele queria motivos, agora os teria. Que viesse a separação.
Mas não estava assim tão decidida. Era só a raiva o que a impulsionava. Não admitia, mas gostava dele ainda, mesmo depois de saber toda a história sórdida da traição. João pediu a separação: foi na mesma noite em que ela havia saído para conversar com suas amigas costureiras. Assim que voltou, ele a chamou para um canto da cozinha e disse que não a agüentava mais. Ela não revidou. Nada disse sobre sua descoberta. Calou-se e consentiu com a cabeça. Dormiram separados.
No dia seguinte, Teresa acordou feliz. Preparou o café da manhã. João, ao despertar, pensou que sua mulher estaria confinada no banheiro, como sempre fazia quando brigavam. Surpreendeu-se, pois o rosto iluminado de Teresa a fazia ficar ainda mais jovem e bonita. Sentiu-se bem, agora poderiam ser felizes. Separados, mas felizes.
Tomou um gole do café preto preparado por Teresa, comeu o pão quentinho, com manteiga derretida. Eles até conversaram: Teresa disse que voltaria a estudar e seguiria uma profissão. João, satisfeito, deixou a mesa em direção à porta da rua. Antes de sair, sua agora ex-mulher o chamou. Queria um último beijo. Ele deu.
João abriu a porta da rua, mas antes de sair, sentiu uma pontada no peito. Havia uma pequena escada do lado de fora, e ele acabou caindo, degrau a degrau, ficando roxo e estático ao final dela. Teresa, na porta, gargalhava, uma gostosa e doentia gargalhada. Abaixou-se para verificar se o marido ainda estava vivo, e vendo que não, chamou a ambulância. Uma semana depois, viúva, Teresa ficou com a padaria. Um ano depois, com um rapaz quase dez anos mais novo como marido.