domingo, outubro 19, 2008

Sobre formigas e escritas

Não comia há dois dias. Um mês inteiro se alimentando mal deveria mesmo terminar nisso. O problema não era tanto o mal estar físico, porém, a dor de estômago piorava progressivamente. Era o vazio.
Seu trabalho era baseado em repetições. Às vezes só ponderava sobre a possibilidade de estar ficando louca, outras vezes tinha certeza disso. Mas levava a vida, na medida do possível, normalmente. Nunca deixou transparecer a ninguém que aquela rotina lhe despertava tendências ao suicídio, idéias malucas que incluíam tanto comprimidos quanto fluídos de freio.
Sua maior distração era escrever. Isso ela fazia com prazer, apesar de detestar tudo o que escrevia. Não tinha pretensões. Queria apenas expressar e exteriorizar alguns de seus pensamentos, pois, se não o fizesse, sentiria que sua cabeça explodiria. E com quase a mesma urgência de uma necessidade fisiológica. Ela evacuava pensamentos.
Dessa vez não conseguia. Ou não os tinha, ou os tinha em demasia e assim encontrava dificuldade em focá-los. Procurou caneta e papel e, só para tentar mais uma vez, começou a escrever. Queria fazer uma analogia, mas nada lhe vinha em mente. Ao olhar em volta, percebeu que uma formiga tentava carregar uma migalha de pão. Pronto! Escreveria sobre as formigas e sua capacidade física. A analogia: precisava pensar em algo que unisse a idéia de carregar seu próprio peso e carregar o peso de uma vida. Eis que o vazio novamente lhe corrói as entranhas e nenhuma palavra se encaixa. O estômago parece ter sido rasgado ao meio.
Duas colheres de leite de magnésia e algumas páginas de jornal. Lia sobre política nacional, sobre problemas na economia. Leu seu horóscopo e algumas tirinhas, mas não acreditou nem nas previsões e nem nas piadas. Sentiu-se mal, uma náusea persistente: mas não era, como ela queria, o indício da gestação de uma grande idéia que preencheria aquele vazio existencial. Este, ao que tudo indicava, perduraria pelo resto de sua vida. O que a náusea indicava era que ela não apenas iria carregar o peso de sua própria existência, mas também o de uma vida.

Nenhum comentário: