segunda-feira, março 31, 2008

As Flores do Caminho

As flores do caminho

Rezava, chorava, se atormentava. Heloísa começava a perder a noção de tempo e espaço. Parecia que nada fazia sentido, que o sol brilhante e quente já não a aquecia ou a iluminava como antes. Que o mistério da lua, antes tão instigante para ela, já não existia mais. Que as flores coloridas mereciam morrer secas e que o perfume delas se esvaísse pelo ar, perdendo-se nas nuvens negras de fumaça. Que motivos teria Heloísa para se tornar tão triste? Se perguntássemos a ela, nem a própria conseguiria responder. Acúmulo de tristezas, talvez.

Houve um dia em que suas esperanças escaparam da caixa. Tudo o que ela temia acontecer acabou acontecendo. Perdeu sua vontade. Perdeu as forças. Viu-se perdida num mundo escuro, tão escuro quanto um filme de Tim Burton. Estava sim sozinha, mas isso não fazia diferença, o pior de tudo era sentir-se perdida. Não se reconhecia mais, nem aos outros. Esse poderia ser o fim para Heloísa. Mas não foi, e graças às flores de seu lindo jardim.

Havia plantado algumas belas flores num jardim que antes era abandonado. Cuidava delas já fazia tempo. Pareciam ter personalidade, as danadas. Quando Heloísa estava feliz com alguma coisa, as flores exalavam ainda mais os seus perfumes e abriam as pétalas, parecendo querer abraçar sua jardineira. Ao contrário, quando Heloísa aparecia no jardim cabisbaixa, lá estavam as flores, todas com um ar melancólico. Havia dias em que, à sombra de uma ruga de preocupação, suas queridas flores, com tanta dedicação, faziam retornar seu belo sorriso. As flores de Heloísa eram mesmo especiais.

Voltando à triste sina de Heloísa, estava ela no fundo do poço. Ou melhor, na lama do fundo do poço. Até que, numa crise emocional, ela se levantou de seu sofá, pegou uma pá e dirigiu-se ao jardim. Queria se desfazer das flores, e como era só ela quem cuidava das coitadinhas, e sem sua força de vontade e alegria todas as margaridas, girassóis, rosas, orquídeas e violetas iriam morrer de qualquer jeito mesmo, foi até lá para encurtar o sofrimento das pobres.

Antes de iniciar o genocídio das flores, Heloísa rezou, pedindo para que a natureza a perdoasse. O sol estava forte e a pá brilhava ainda mais, o que deu à ferramenta um certo ar de foice. As pequenas borboletas da primavera faziam visita às margaridas, uma joaninha se aninhava nos pistilos de um dos girassóis, o mais velho. Uma abelha incomodava com seu zunido algumas violetas, e as orquídeas talvez estivessem queixando-se de sede, pois Heloísa passara dias sem uma única visita. Estavam todas as flores felizes em vê-la, mas também pareciam saber das intenções da jardineira, que pegou então sua pá. O sol, no mesmo momento, se escondeu. Nuvens cinzas de chuva apareceram em questão de segundos, e uma garoa caiu. Uma garoa tão fininha e fresca que, mesmo com o sol escondido, nem os girassóis se encurvaram, pois queriam também sentir aqueles pinguinhos de chuva gelados. E Heloísa deixou-se molhar. O cheiro do chão úmido a fez voltar ao tempo de criança. As flores, se tivessem como, estariam rindo, gargalhando. E a pá, então, foi esquecida.

Hoje Heloísa está lá, em seu jardim. Plantou mais flores, adubou a terra. Algumas crianças costumam brincar de esconde-esconde atrás das moitas de azálea, e os insetos levam as sementes para todo lugar. É possível ver um broto de rosas nascendo pelas redondezas do jardim, nas casas vizinhas. Todos do bairro sabem que, se não fossem as flores e Heloísa, talvez uma das pracinhas mais lindas da cidade não existisse. E Heloísa sabe que, pelas suas flores, todo dia seus olhos abrem e ela segue seu destino, sem pensar, sem se perder pelo caminho das flores.

terça-feira, março 25, 2008

Quem brinca com fogo, com fogo se queima

Quem brinca com fogo, com fogo se queima

Seu nome era João. O dela era Teresa. Casados há vinte anos, a rotina tomara conta de suas não tão regradas vidas. Teresa era dona-de-casa, João um comerciante. Tinham uma padaria, medíocre, é verdade, mas nunca lhes faltava pão. Literalmente.
Sempre que podiam, saíam os dois juntos, de mãos dadas. Bebiam juntos uma cervejinha, no final da tarde. Brigavam muito, pois João não pensava em outra coisa a não ser na padaria. Porém, há dias, Teresa se sentia isolada. Sentia-se invisível aos olhos de João. Por muitas noites, chorou sozinha. Queria ser muito mais que sua companheira. Queria ser a luz da vida de João, e sabia que isso nunca aconteceria. Era questão de tempo para que os dois se apartassem, mas mesmo assim, ela tentava.
Teresa caiu numa depressão. Estava no fundo do poço. Encontrou algumas cartas no fundo do armário de sapatos assinadas por uma outra mulher. Eram cartas de amor, em que Teresa era massacrada. Ela era a causa dos fracassos do marido, segundo a outra. Esta prometia ao seu amante que, assim que ele pedisse a separação, viveriam o paraíso. Ela o encheria de amor, e juntos teriam filhos, teriam paz. Teresa, como sempre, sofria calada. Quando João chegou da padaria naquela noite, Teresa se resignou e nada mais fez. Não limpou mais a casa. Não tomou mais banho. Não queria mais conversar. Nem comida ela fez. Se ele queria motivos, agora os teria. Que viesse a separação.
Mas não estava assim tão decidida. Era só a raiva o que a impulsionava. Não admitia, mas gostava dele ainda, mesmo depois de saber toda a história sórdida da traição. João pediu a separação: foi na mesma noite em que ela havia saído para conversar com suas amigas costureiras. Assim que voltou, ele a chamou para um canto da cozinha e disse que não a agüentava mais. Ela não revidou. Nada disse sobre sua descoberta. Calou-se e consentiu com a cabeça. Dormiram separados.
No dia seguinte, Teresa acordou feliz. Preparou o café da manhã. João, ao despertar, pensou que sua mulher estaria confinada no banheiro, como sempre fazia quando brigavam. Surpreendeu-se, pois o rosto iluminado de Teresa a fazia ficar ainda mais jovem e bonita. Sentiu-se bem, agora poderiam ser felizes. Separados, mas felizes.
Tomou um gole do café preto preparado por Teresa, comeu o pão quentinho, com manteiga derretida. Eles até conversaram: Teresa disse que voltaria a estudar e seguiria uma profissão. João, satisfeito, deixou a mesa em direção à porta da rua. Antes de sair, sua agora ex-mulher o chamou. Queria um último beijo. Ele deu.
João abriu a porta da rua, mas antes de sair, sentiu uma pontada no peito. Havia uma pequena escada do lado de fora, e ele acabou caindo, degrau a degrau, ficando roxo e estático ao final dela. Teresa, na porta, gargalhava, uma gostosa e doentia gargalhada. Abaixou-se para verificar se o marido ainda estava vivo, e vendo que não, chamou a ambulância. Uma semana depois, viúva, Teresa ficou com a padaria. Um ano depois, com um rapaz quase dez anos mais novo como marido.