sábado, novembro 21, 2009

AEon Flux e outros pensamentos


   A vontade repentina de escrever não é usual. O processo criativo leva alguns dias, pois primeiramente trabalho as ideias nos momentos ociosos do dia, escrevo um rascunho (em folhas de sulfite que encontro na coordenação do colégio, em guardanapinhos dos botecos) para, só depois de algumas alterações, publicar. Alguns poucos textos foram criados sem planejamento - esses geralmente inspirados por uma música  tocante ou por um filme recém-assistido (alguns por raiva mesmo, pura e simplesmente). Eu poderia ter criado uma narrativa a partir de Aeon Flux, mas seria pretensão demais, então resolvi comentar minhas impressões assim, humildemente.

   Assisti algumas partes do desenho, este perturbador, surreal e atrevido - do jeito que gosto. Quando possível, usarei meu poder aquisitivo para satisfazer meu desejo consumista de possuir o box completo dos episódios. Por enquanto, aproveito para expor algumas ideias que fervilham aqui dentro - escrevo por isso mesmo, para não enlouquecer. Minha mente muito se parece com uma panela de pressão, se a ideia cozinhar por muito tempo, explodo.

   Exagero da minha parte! Não enlouqueceria nem explodiria. Mas a necessidade é real.

   No filme - que acabou de ser exibido pela milionésima vez na tv - quem interpreta a Aeon é Charlize Theron. Cumpriu seu papel, o que é até surpreendente, visto que a personagem original é muito mais complexa, assim como o enredo (que na verdade não segue qualquer regra de coerência ou linha temporal - e isso é muito legal mesmo). No filme, a relação entre Aeon e Trevor baseia-se num romantismo típico dos filmes hollywoodianos, o que é de se esperar. No desenho, para quem já acompanhou, Aeon é amante de seu arqui-inimigo, o que rende cenas de um erotismo latente mesclado com tiros e sangue.  E isso era exibido pela MTV na década de noventa, no meio da tarde.

   De maneira sintética, o que impressiona é a ideia da imortalidade presente no enredo - tema que persegue a humanidade desde sempre, na maioria das vezes trabalhado de forma banal ou, mais raramente, de forma inteligente. No desenho nada era explicado e o público, forçadamente, levado a intuir, episódio a episódio, os detalhes da história. No filme, os entrames e personagens foram mastigados, bastando ao espectador apenas engolir - uma grande parte não conseguiu, aliás. Volto ao que pretendia dizer: a ideia da imortalidade nos faz repensar nossa própria existência. Seguimos a rotina tão automaticamente que não percebemos a aproximação, cada vez maior, da morte. É claro que pensamos nisso de vez em quando, com medo ou angústia. Todavia, reproduzindo as mesmas palavras usadas por Aeon no filme, "We're meant to die. Its what makes everything about us matter".


   Somente uma vida, a princípio. Não há outra certeza. Desesperador ou energizante? Talvez seja por isso que, ao envelhecermos, perdemos nossa vitalidade e jovialidade, afinal, é um preço justo a pagar pela sabedoria - que, de brinde, traz consigo o esclarecimento e a resposta à pergunta acima.

   Por hoje é só. Deixo com vocês a Aeon original.




  

  

terça-feira, novembro 17, 2009

Madrugadas (continuação)


   Naquele dia ele chegou dez minutos atrasado para o trabalho. Isso talvez não fizesse diferença alguma para a maioria das escolas, porém, onde trabalhava o atraso do professor era punido com "pontos negativos", e ele já possuía dois. Mais um e, inevitavelmente, seria advertido de maneira severa. Regras devem ser respeitadas, afinal de contas. Ao chegar, descontou sua raiva em cima dos alunos obrigando-os a dar voltas em torno do ginásio, coisa incomum. Mesmo a raiva era incomum, nem ele mesmo estava entendendo o que sentia. Sabia que algo parecia crescer dentro de si, e entre um grito e outro, com uma das mãos em torno da cintura, procurava relembrar o sonho que tivera na noite anterior. Os flash backs apenas aguçavam sua curiosidade.

   Lembrava-se de uma festa e um hospital, e de um médico também. Mas o que havia acontecido? As horas passaram, o sinal bateu e o alvoroço era geral. Crianças e adolescentes correndo de um lado a outro, comendo seus sanduíches ou as frituras medonhas da cantina. Ele apenas tomou um café forte e quente, muito quente. Queimou a ponta da língua e blasfemou. Lembrou-se que sua esposa estava também no sonho. E usava um vestido marrom-glacê, terrivelmente atraente. Nem em sonhos ela poderia usar aquele vestido, pensou ele, tomando o café de uma vez só. Agora a garganta toda queimava, o sinal gritava  e sua mente procurava resquícios de um sonho fragmentado pela memória. Depois de mais duas aulas para a oitava série foi para casa. Lá chegando, com urgência vasculhou o armário da esposa à procura de um vestido marrom-glacê.

   E lá estava! Um vestido da mesma cor... mas diferente. Não era tão justo quanto o do sonho. Ele lembrou-se do quanto custara caro na época, há aproximadamente três anos. Comprara numa botique chique. Era aniversário dela, mas estavam brigados (não lembrou-se do motivo). Porém, sentira vontade de aparecer com algo diferente, nada de rosas ou chocolates. Chegara atrasado ao shopping e quase se deparou com a loja fechada. O lugar era enorme, as atendentes finas e elegantes e o público, em peso, feminino. Lembrou-se daquela sensação: como um estrangeiro numa terra estranha. Acabara levando para casa aquele vestido que agora escorregava de sua mão.

   Aquilo era cetim. O vestido do sonho parecia seda e, se não fosse algum jogo entre sua memória e sua imaginação, estava certo de que também era transparente. Olhou para o teto, respirou fundo, olhou de volta para o vestido. Suspirou alto e guardou-o. Queria esquecer o sonho, voltar à rotina. Mas aquela sensação... talvez estivesse apenas impressionado. Perguntou-se se um sonho poderia enlouquecer um homem. Não sabia.

   Horas se passaram.

   O tempo todo tentava esquecer suas paranóias, mas aquela sensação esquisita teimava em voltar a perturbá-lo. Lavou toda a louça da cozinha para afastar os pensamentos negativos, porém de nada adiantou. Procurou então entreter-se com um filme, e durante duas horas a manobra deu certo. Não conseguiu terminar de ver os créditos finais e então, desesperado com aqueles sentimentos desconcertantes e insistentes, resolveu sair e fazer uma caminhada. Pensou que talvez pudesse até comprar alguns pães e frios para comer na hora da ceia. Concordou também que seria sensato conversar com a esposa sobre o estranho sonho que tanto lhe assombrava durante as últimas 48 horas.

   Sete horas da noite. O sol se escondia cada vez mais no horizonte. Os tons alaranjados e rosados do céu o fizeram parar para assistir aquela cena tão banal e ao mesmo tempo tão fantástica. Um pássaro voou baixo e se enfiou entre os galhos de uma árvore próxima. Com certeza, pensava ele, agora a ave iria descansar suas asas, pois o domínio da noite e sua escuridão era certo e estava próximo. Agora era hora de repousar e esperar até que o sol, cintilante, retomasse o seu posto, tão efêmero quanto o da própria madona das trevas.

   Chegou em casa e já era noite. Ruminava mentalmente a conversa que teria com a esposa assim que chegasse. Ela, certamente, já teria ligado para meio mundo à sua procura. Mas só o que pensava era em resolver logo essa insana situação. Abriu a porta, entrou. Na sala, jogadas no chão e amontoadas no centro de mesa, diversas agendas telefônicas. Vindos da escada, os passos apressados da mulher. Ela o fita por alguns segundos e corre para abraçá-lo, e o que se ouvia entre alguns suspiros de alívio era "meu amor, que que te aconteceu?" e "queria me matar de preocupação?".

   Dois minutos depois estavam sentados no sofá e ele a fitava. Ela já não era tão jovem. A vida também não fôra tão fácil assim. O casamento, a filha, o trabalho. Preocupações. Há quanto tempo não se divertiam? Tentou lembrar-se da última vez que saíram para beber e dançar... não conseguiu. É que, com o tempo, certos interesses acabam ficando em segundo plano. Ou terceiro... ou acabam sendo deixados de lado. A mensalidade da escola, a compra do mês, o seguro do carro, tudo isso pesava mais na balança. Não  se tornara possível gastar o pouco que tinham para reencontrar os velhos amigos em velhas  sessões de nostalgia. Pensando melhor, talvez estivessem velhos demais para isso. Talvez o problema não fosse financeiro.

   A esposa questionou-o, queria saber qual era o problema. Disse que ele estava quieto demais, perguntou-lhe em que mundo estava. Os olhos dela agora serviam como espelhos e a imagem que via não lhe agradou. A imagem de alguém que nunca quisera ser. Por fim, resolveu contar-lhe sobre o sonho que tivera. Detalhe por detalhe. Quando terminou a narrativa esperava por consolo, afinal, até aquele momento pensava estar louco. A esposa, num espasmo, desatou a rir. "Deixa disso, meu bem, era só um sonho. Acho melhor a gente sair hoje, ficar bêbados, porque na segunda a Bibi volta." Alívio. Respirou e riu também. Mas riu um riso forçado, como quando rimos de uma situação desesperadora. Abraçaram-se e subiram para o quarto.
A esposa despiu-se, ele despiu-se. Tomaram banho juntos, como há anos não faziam. Embaixo do chuveiro, gemidos. Estavam, enfim, felizes, e seu sonho não mais se repetiu.



domingo, novembro 01, 2009

Um café requentado e um mantra mal recitado



As nuvens já rodeavam a cidade há dias, como se estivessem esperando o momento certo para que deixassem cair suas gotas de chuva. E foi justamente naquela manhã. O despertador ainda não tocara, mas ela já havia acordado. Pela fresta da janela só via um céu cinzento, mal humorado. Pensou em suas blusas de frio, todas empoeiradas, guardadas há meses dentro do armário e suspirou. O pior não seria isto, e sim a falta de um guarda-chuva, objeto muito útil para quem não possuía um veículo próprio - como ela. Deu de ombros. O despertador berrou, fazendo-a pular da cama, literalmente.

Zonza de sono, caminhou em direção ao vaso sanitário. A louça gelada a fez despertar de uma vez. Bem que poderia inventar uma desculpa para não ir trabalhar e dormir mais algumas horas. Quem sabe até a hora do almoço... mas não. Não iria conseguir dormir novamente e poderia ainda se arrepender, pois sua consciência não iria deixá-la em paz. Ligou o chuveiro. A primeira rajada de água estava gelada e então blasfemou. Passados vinte minutos, não queria mais sair debaixo daquela ducha tão aconchegante. A temperatura da água se assemelhava à temperatura de seu edredon, o vapor a divertia - rabiscava com o dedo no vidro do box vários corações, pirulitos e estrelas -, o perfume do xampu a relaxava ao mesmo tempo em que o sabonete a acariciava. Naquele momento estava no paraíso. Suspirou. O tempo passava, ela precisava sair do banho. Desligou o chuveiro, se enxugou e, saindo do banheiro, sentiu o ar mais frio. Vestiu-se rapidamente, desceu as escadas e tomou um café requentado no microondas, uma droga. Saiu de casa.

Ponto de ônibus: nenhum chega. Impaciente, acende mais um cigarro. Dentro de vinte minutos teria que entrar na sala de aula e até aquele momento nenhuma condução aparecia. O frio e a chuva só pioravam a situação e para relaxar um pouco ela mentalizava um mantra. Vira na televisão uma reportagem sobre budismo dizendo que em situações adversas o tal mantra poderia ser recitado. Budismo em escala global. Palhaçada!

Apesar de saber que talvez não adiantaria muito, iniciou uma sequências de "ows" desafinados e riu sozinha. O vento, inexplicavelmente, tomou outra direção e a chuva passou a molhar toda a sua calça jeans. O tênis já estava encharcado, assim como sua meia. O próximo passo seria ela ficar gripada, o que não era tão ruim, pois poderia faltar ao trabalho sem se sentir uma pessoa desonesta. Mas antes que ela pudesse se imaginar quentinha embaixo de seu edredon, o ônibus chega.

Sentou-se no primeiro banco que viu. Olhando pela janela, ficou a divagar sobre a vida, como todos os dias fazia. Nunca chegou a conclusão alguma, possuía apenas suas premissas. Mesmo suas certezas eram incertas, e ela sempre refletia sobre a falta de controle que possuía sobre seu destino. Entretanto, nessa manhã concluiu uma ideia, finalmente: não havia certeza alguma na vida, e era essa a graça. Se tudo fosse tão certo não haveria risco algum e a vida não teria suas surpresas.

Deu sua aula, corrigiu as provas de seus alunos, discutiu com os mais interessados. Sabia o que estava fazendo. Ali era o seu mundo, o seu lugar. Não teria que se preocupar com o tempo, com as contas, com tudo aquilo que não podia controlar. Tudo ficava sob controle a partir do momento em que começava sua primeira aula do dia. E isso a deixava satisfeita.

Seis da tarde. Mais um ônibus. Inexistência de nuvens no céu, que já ficava alaranjado. O pôr-do-sol a fazia sentir-se mais viva, a noite a fazia sentir-se mais feminina. Mas antes de chegar em casa, espirrou. É, provavelmente não iria trabalhar no dia seguinte...