domingo, novembro 01, 2009

Um café requentado e um mantra mal recitado



As nuvens já rodeavam a cidade há dias, como se estivessem esperando o momento certo para que deixassem cair suas gotas de chuva. E foi justamente naquela manhã. O despertador ainda não tocara, mas ela já havia acordado. Pela fresta da janela só via um céu cinzento, mal humorado. Pensou em suas blusas de frio, todas empoeiradas, guardadas há meses dentro do armário e suspirou. O pior não seria isto, e sim a falta de um guarda-chuva, objeto muito útil para quem não possuía um veículo próprio - como ela. Deu de ombros. O despertador berrou, fazendo-a pular da cama, literalmente.

Zonza de sono, caminhou em direção ao vaso sanitário. A louça gelada a fez despertar de uma vez. Bem que poderia inventar uma desculpa para não ir trabalhar e dormir mais algumas horas. Quem sabe até a hora do almoço... mas não. Não iria conseguir dormir novamente e poderia ainda se arrepender, pois sua consciência não iria deixá-la em paz. Ligou o chuveiro. A primeira rajada de água estava gelada e então blasfemou. Passados vinte minutos, não queria mais sair debaixo daquela ducha tão aconchegante. A temperatura da água se assemelhava à temperatura de seu edredon, o vapor a divertia - rabiscava com o dedo no vidro do box vários corações, pirulitos e estrelas -, o perfume do xampu a relaxava ao mesmo tempo em que o sabonete a acariciava. Naquele momento estava no paraíso. Suspirou. O tempo passava, ela precisava sair do banho. Desligou o chuveiro, se enxugou e, saindo do banheiro, sentiu o ar mais frio. Vestiu-se rapidamente, desceu as escadas e tomou um café requentado no microondas, uma droga. Saiu de casa.

Ponto de ônibus: nenhum chega. Impaciente, acende mais um cigarro. Dentro de vinte minutos teria que entrar na sala de aula e até aquele momento nenhuma condução aparecia. O frio e a chuva só pioravam a situação e para relaxar um pouco ela mentalizava um mantra. Vira na televisão uma reportagem sobre budismo dizendo que em situações adversas o tal mantra poderia ser recitado. Budismo em escala global. Palhaçada!

Apesar de saber que talvez não adiantaria muito, iniciou uma sequências de "ows" desafinados e riu sozinha. O vento, inexplicavelmente, tomou outra direção e a chuva passou a molhar toda a sua calça jeans. O tênis já estava encharcado, assim como sua meia. O próximo passo seria ela ficar gripada, o que não era tão ruim, pois poderia faltar ao trabalho sem se sentir uma pessoa desonesta. Mas antes que ela pudesse se imaginar quentinha embaixo de seu edredon, o ônibus chega.

Sentou-se no primeiro banco que viu. Olhando pela janela, ficou a divagar sobre a vida, como todos os dias fazia. Nunca chegou a conclusão alguma, possuía apenas suas premissas. Mesmo suas certezas eram incertas, e ela sempre refletia sobre a falta de controle que possuía sobre seu destino. Entretanto, nessa manhã concluiu uma ideia, finalmente: não havia certeza alguma na vida, e era essa a graça. Se tudo fosse tão certo não haveria risco algum e a vida não teria suas surpresas.

Deu sua aula, corrigiu as provas de seus alunos, discutiu com os mais interessados. Sabia o que estava fazendo. Ali era o seu mundo, o seu lugar. Não teria que se preocupar com o tempo, com as contas, com tudo aquilo que não podia controlar. Tudo ficava sob controle a partir do momento em que começava sua primeira aula do dia. E isso a deixava satisfeita.

Seis da tarde. Mais um ônibus. Inexistência de nuvens no céu, que já ficava alaranjado. O pôr-do-sol a fazia sentir-se mais viva, a noite a fazia sentir-se mais feminina. Mas antes de chegar em casa, espirrou. É, provavelmente não iria trabalhar no dia seguinte...


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