quarta-feira, outubro 29, 2008

A Última Criança
Em que ano estavam nem eles mesmo sabiam. O tempo não era mais medido por calendários, mas pela pele que se enrugava, as crianças que cresciam, os idosos que morriam. Aliás, não nasciam mais crianças já há algum tempo. Parecia que a era do homem finalmente se acabava. Lá fora, as tempestades torciam as poucas árvores que ainda restaram. No dia anterior, o ar estava tão seco e os ventos tão cortantes que seus olhos se encheram de areia. Estavam hoje com chumaços para aplacar a vermelhidão. Talvez pudessem até estar cegos.

Tempos muito difíceis. Não era fácil comer, nem beber, nem andar ou se abrigar. O relógio da humanidade pareceu voltar: os que restaram se reuniam em grupos para sobreviver, em cavernas, como nossos primitivos antecessores. Mas a evolução humana do final do século XXV não contava com isso. Não contava com o descaso do homem, com sua ambição. A destruição foi paulatinamente arquitetada. O planeta sobreviveu, claro.

Agora nem se reproduziam mais. A última geração de homens tinha entre sete anos, vestiam roupas encontradas nos grandes lixões. O lixo humano era a única coisa que tinham, isso e as cavernas. Incrível a força das chuvas torrenciais. Depois de uma tempestade não era possível nem reconhecer o local atingido. O grupo conseguira encontrar, no topo de uma montanha, um local seguro. Abaixo desta, o que antes era uma cidade. Agora era um lugar fantasmagórico. Restos de construções mostravam que os antigos moradores viveram lá os tempos de ouro da civilização pós-moderna. Não parecia real. Os mais antigos do grupo contavam histórias verídicas que mais pareciam fábulas.

Mas o pior não eram as chuvas... havia os ciclos de seca. Ventos e areia. (continua)

domingo, outubro 19, 2008

Sobre formigas e escritas

Não comia há dois dias. Um mês inteiro se alimentando mal deveria mesmo terminar nisso. O problema não era tanto o mal estar físico, porém, a dor de estômago piorava progressivamente. Era o vazio.
Seu trabalho era baseado em repetições. Às vezes só ponderava sobre a possibilidade de estar ficando louca, outras vezes tinha certeza disso. Mas levava a vida, na medida do possível, normalmente. Nunca deixou transparecer a ninguém que aquela rotina lhe despertava tendências ao suicídio, idéias malucas que incluíam tanto comprimidos quanto fluídos de freio.
Sua maior distração era escrever. Isso ela fazia com prazer, apesar de detestar tudo o que escrevia. Não tinha pretensões. Queria apenas expressar e exteriorizar alguns de seus pensamentos, pois, se não o fizesse, sentiria que sua cabeça explodiria. E com quase a mesma urgência de uma necessidade fisiológica. Ela evacuava pensamentos.
Dessa vez não conseguia. Ou não os tinha, ou os tinha em demasia e assim encontrava dificuldade em focá-los. Procurou caneta e papel e, só para tentar mais uma vez, começou a escrever. Queria fazer uma analogia, mas nada lhe vinha em mente. Ao olhar em volta, percebeu que uma formiga tentava carregar uma migalha de pão. Pronto! Escreveria sobre as formigas e sua capacidade física. A analogia: precisava pensar em algo que unisse a idéia de carregar seu próprio peso e carregar o peso de uma vida. Eis que o vazio novamente lhe corrói as entranhas e nenhuma palavra se encaixa. O estômago parece ter sido rasgado ao meio.
Duas colheres de leite de magnésia e algumas páginas de jornal. Lia sobre política nacional, sobre problemas na economia. Leu seu horóscopo e algumas tirinhas, mas não acreditou nem nas previsões e nem nas piadas. Sentiu-se mal, uma náusea persistente: mas não era, como ela queria, o indício da gestação de uma grande idéia que preencheria aquele vazio existencial. Este, ao que tudo indicava, perduraria pelo resto de sua vida. O que a náusea indicava era que ela não apenas iria carregar o peso de sua própria existência, mas também o de uma vida.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Não Mais do Mesmo

A espera fazia parte da rotina. Enquanto esperava, acendia mais um cigarro. O ônibus não chegaria enquanto não acendesse o segundo, essa era sua única crença. Dali a alguns minutos a espera chegaria ao fim e mais uma vez tudo seria igual. Muito igual. E não tardou. Lá estava, subindo a rua, o velho ônibus fretado de sempre.

A terceira poltrona do lado da janela era praticamente sua. Sentou-se, fechou as cortinas vermelhas e tentou cochilar. Os raios solares acabavam de aparecer no horizonte... mais um amanhecer, como todos os outros. Não queria saber. O sol que cumprisse sua função, assim como ele. Todos eram obrigados a desempenhar suas funções, era a lei da selva de pedra. Havia perdido a capacidade de enxergar qualquer poesia à sua volta. Anos de experiência...

Mais uma parada, dessa vez, brusca. Com a freada, despertou de seus devaneios. Quase perdeu a paciência, mas deixou estar. Não lembrava de haver ponto de ônibus naquele local, era um descampado, no meio da estrada. Ouviu um agradecimento e pedidos de desculpa intermináveis. Voz feminina, jovem, desinibida. Resolveu esperar para ver quem era e, por algum acaso, se é que isso existe, ela se sentou ao seu lado. Não gostava muito de dividir seu espaço, mas naquele momento não se sentia incomodado. Cheiro de shampoo e cigarro. Respirou fundo e deu um meio sorriso, de canto de boca.

Não ousou conversar com a moça, assim como ela também não se atreveu. Desconhecidos não precisavam manter qualquer tipo de contato, no máximo um cumprimento, apenas formalidade. Refletiu um minuto... viver talvez tenha se tornado mera formalidade. Teria ele se tornado um robô, uma ferramenta de trabalho, como todos aqueles sentados em suas poltronas, apáticos, ocos? Sua companhia parecia destoar... pensou a respeito. Nova funcionária? Quem seria ela? O discurso estava formulado em sua mente, iria esclarecer o mistério. Mas as palavras não adquiriam forma... ficaram todas presas em sua garganta.

Sua cabeça estava ereta, olhava para frente, porém, sua vontade era de virar-se. Desejava, por algum motivo, guardar as feições daquele rosto. Não virou-se nem por um segundo. Sabia que ela era loira e que usava tênis allstar verdes, pois poderia vê-los sem nem se mexer muito. Num movimento ela se levantou. O quê? Seria por causa dele? Ele estaria importunando-a? Para sua felicidade momentânea, conseguiu visualizar seu perfil e seus cabelos dourados chegando às costas. Ouvira seu pedido ao motorista, novamente entre sorrisos e agradecimentos. Ela desceria no próximo ponto.

Era um desses momentos em que não se sabe como agir. Ele não soube. Ela desceu. O ônibus seguiu, e em poucos minutos chegou à firma. Ele continuou sua rotina, fez sua hora de almoço. Ao entardecer, tomou o mesmo ônibus de volta, e seu coração bateu descompassadamente no trecho em que a moça havia descido; ele nunca mais a viu. Mas o amanhecer, a partir daquele fatídico dia, era uma esperança a mais. Afinal, outro amanhecer daqueles poderia se repetir, um dia, talvez.