Naquele dia ele chegou dez minutos atrasado para o trabalho. Isso talvez não fizesse diferença alguma para a maioria das escolas, porém, onde trabalhava o atraso do professor era punido com "pontos negativos", e ele já possuía dois. Mais um e, inevitavelmente, seria advertido de maneira severa. Regras devem ser respeitadas, afinal de contas. Ao chegar, descontou sua raiva em cima dos alunos obrigando-os a dar voltas em torno do ginásio, coisa incomum. Mesmo a raiva era incomum, nem ele mesmo estava entendendo o que sentia. Sabia que algo parecia crescer dentro de si, e entre um grito e outro, com uma das mãos em torno da cintura, procurava relembrar o sonho que tivera na noite anterior. Os flash backs apenas aguçavam sua curiosidade.
Lembrava-se de uma festa e um hospital, e de um médico também. Mas o que havia acontecido? As horas passaram, o sinal bateu e o alvoroço era geral. Crianças e adolescentes correndo de um lado a outro, comendo seus sanduíches ou as frituras medonhas da cantina. Ele apenas tomou um café forte e quente, muito quente. Queimou a ponta da língua e blasfemou. Lembrou-se que sua esposa estava também no sonho. E usava um vestido marrom-glacê, terrivelmente atraente. Nem em sonhos ela poderia usar aquele vestido, pensou ele, tomando o café de uma vez só. Agora a garganta toda queimava, o sinal gritava e sua mente procurava resquícios de um sonho fragmentado pela memória. Depois de mais duas aulas para a oitava série foi para casa. Lá chegando, com urgência vasculhou o armário da esposa à procura de um vestido marrom-glacê.
E lá estava! Um vestido da mesma cor... mas diferente. Não era tão justo quanto o do sonho. Ele lembrou-se do quanto custara caro na época, há aproximadamente três anos. Comprara numa botique chique. Era aniversário dela, mas estavam brigados (não lembrou-se do motivo). Porém, sentira vontade de aparecer com algo diferente, nada de rosas ou chocolates. Chegara atrasado ao shopping e quase se deparou com a loja fechada. O lugar era enorme, as atendentes finas e elegantes e o público, em peso, feminino. Lembrou-se daquela sensação: como um estrangeiro numa terra estranha. Acabara levando para casa aquele vestido que agora escorregava de sua mão.
Aquilo era cetim. O vestido do sonho parecia seda e, se não fosse algum jogo entre sua memória e sua imaginação, estava certo de que também era transparente. Olhou para o teto, respirou fundo, olhou de volta para o vestido. Suspirou alto e guardou-o. Queria esquecer o sonho, voltar à rotina. Mas aquela sensação... talvez estivesse apenas impressionado. Perguntou-se se um sonho poderia enlouquecer um homem. Não sabia.
Horas se passaram.
O tempo todo tentava esquecer suas paranóias, mas aquela sensação esquisita teimava em voltar a perturbá-lo. Lavou toda a louça da cozinha para afastar os pensamentos negativos, porém de nada adiantou. Procurou então entreter-se com um filme, e durante duas horas a manobra deu certo. Não conseguiu terminar de ver os créditos finais e então, desesperado com aqueles sentimentos desconcertantes e insistentes, resolveu sair e fazer uma caminhada. Pensou que talvez pudesse até comprar alguns pães e frios para comer na hora da ceia. Concordou também que seria sensato conversar com a esposa sobre o estranho sonho que tanto lhe assombrava durante as últimas 48 horas.
Sete horas da noite. O sol se escondia cada vez mais no horizonte. Os tons alaranjados e rosados do céu o fizeram parar para assistir aquela cena tão banal e ao mesmo tempo tão fantástica. Um pássaro voou baixo e se enfiou entre os galhos de uma árvore próxima. Com certeza, pensava ele, agora a ave iria descansar suas asas, pois o domínio da noite e sua escuridão era certo e estava próximo. Agora era hora de repousar e esperar até que o sol, cintilante, retomasse o seu posto, tão efêmero quanto o da própria madona das trevas.
Chegou em casa e já era noite. Ruminava mentalmente a conversa que teria com a esposa assim que chegasse. Ela, certamente, já teria ligado para meio mundo à sua procura. Mas só o que pensava era em resolver logo essa insana situação. Abriu a porta, entrou. Na sala, jogadas no chão e amontoadas no centro de mesa, diversas agendas telefônicas. Vindos da escada, os passos apressados da mulher. Ela o fita por alguns segundos e corre para abraçá-lo, e o que se ouvia entre alguns suspiros de alívio era "meu amor, que que te aconteceu?" e "queria me matar de preocupação?".
Dois minutos depois estavam sentados no sofá e ele a fitava. Ela já não era tão jovem. A vida também não fôra tão fácil assim. O casamento, a filha, o trabalho. Preocupações. Há quanto tempo não se divertiam? Tentou lembrar-se da última vez que saíram para beber e dançar... não conseguiu. É que, com o tempo, certos interesses acabam ficando em segundo plano. Ou terceiro... ou acabam sendo deixados de lado. A mensalidade da escola, a compra do mês, o seguro do carro, tudo isso pesava mais na balança. Não se tornara possível gastar o pouco que tinham para reencontrar os velhos amigos em velhas sessões de nostalgia. Pensando melhor, talvez estivessem velhos demais para isso. Talvez o problema não fosse financeiro.
A esposa questionou-o, queria saber qual era o problema. Disse que ele estava quieto demais, perguntou-lhe em que mundo estava. Os olhos dela agora serviam como espelhos e a imagem que via não lhe agradou. A imagem de alguém que nunca quisera ser. Por fim, resolveu contar-lhe sobre o sonho que tivera. Detalhe por detalhe. Quando terminou a narrativa esperava por consolo, afinal, até aquele momento pensava estar louco. A esposa, num espasmo, desatou a rir. "Deixa disso, meu bem, era só um sonho. Acho melhor a gente sair hoje, ficar bêbados, porque na segunda a Bibi volta." Alívio. Respirou e riu também. Mas riu um riso forçado, como quando rimos de uma situação desesperadora. Abraçaram-se e subiram para o quarto.
A esposa despiu-se, ele despiu-se. Tomaram banho juntos, como há anos não faziam. Embaixo do chuveiro, gemidos. Estavam, enfim, felizes, e seu sonho não mais se repetiu.
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