MADRUGADAS (CONTINUAÇÃO)
Ele acordou. Num sobressalto, apalpou o lençol à procura da realidade. Sentiu aquele alívio reconfortante e respirou fundo, tentando lembrar-se dos detalhes. Inútil. O sonho havia se desfeito e em sua memória restara apenas uma má impressão. Ouviu sons de gavetas abrindo e copos tilintando, espreguiçou-se e desceu as escadas. Sua esposa havia preparado o café cujo cheiro já se espalhava pelos cômodos da casa, convidando os moradores a sentarem-se à mesa e prová-lo. Foi o que ele fez depois de desejar bom dia à companheira.
O café estava ótimo, o pão crocante e a manteiga na temperatura ambiente. Tudo parecia estar como deveria estar, porém a sensação era de desconforto. Enquanto ela se trocava, ele já saía. Agora só voltariam para casa à noite, cansados e cheios de problemas. Ela era secretária e ele professor de educação física num colégio particular. Ambos eram infelizes em suas profissões, mas nem os amigos mais próximos suspeitavam disso. O relacionamento, da mesma forma, parecia dos mais sólidos, entretanto tinham algo em comum, os dois: não tinham muito tempo para discussões inúteis. Há dois anos estavam morando embaixo do mesmo teto. Discutiam muito, às vezes por detalhes bobos, mas nunca brigaram seriamente.
Mas aquele seria um dia diferente.
Naquele dia ele chegou dez minutos atrasado para o trabalho. Isso talvez não fizesse diferença alguma para a maioria das escolas, porém, onde trabalhava o atraso do professor era punido com "pontos negativos", e ele já possuía dois. Mais um e, inevitavelmente, seria advertido. Regras devem ser respeitadas, afinal de contas. Ao chegar, descontou sua raiva em cima dos alunos obrigando-os a dar voltas em torno do ginásio, coisa incomum. Mesmo a raiva era incomum, nem ele mesmo estava entendendo o que sentia. Sabia que algo parecia crescer dentro de si, e entre um grito e outro, com uma das mãos em torno da cintura, procurava relembrar o sonho que tivera na noite anterior. Os flash backs apenas aguçavam sua curiosidade. Lembrava-se de uma festa e um hospital, e de um médico também. Mas o que havia acontecido?
As horas passaram, o sinal bateu e o alvoroço era geral. Crianças e adolescentes correndo de um lado a outro, comendo seus sanduíches ou as frituras medonhas da cantina. Ele apenas tomou um café forte e quente, muito quente. Queimou a ponta da língua e blasfemou. Lembrou-se que sua esposa estava também no sonho. E usava um vestido marrom-glacê, terrivelmente atraente. Nem em sonhos ela poderia usar aquele vestido, pensou ele, tomando o café de uma vez só. Agora a garganta toda queimava, o sinal gritava insistentemente e sua mente procurava resquícios de um sonho fragmentado pela memória. Deu mais duas aulas para a oitava série e foi para casa. Lá chegando, a primeira coisa que fez foi vasculhar o armário da esposa à procura de um vestido marrom-glacê.
(continua...)
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