terça-feira, julho 05, 2011

180 graus


180o

Visto ao longe, parecia alguém comum. Uma pessoa como tantas. Tinha um sonho, um cachorro, tinha medo. Não era insensível, de forma alguma, mas não acreditava no sentimento rotulado “amor”. Para ele, não passava de uma invenção mercadológica, assim como Papai Noel. Gostava de música eletrônica, mas já havia balançado sua cabeça inúmeras vezes em shows de metal. Na verdade, ele compartilhava de apenas uma ideologia, a própria. Acabaria descobrindo quem era de verdade. Talvez isso acontecera quando se deu conta de que interpretara papéis durante toda a sua vida. Na escola, no trabalho, no “amor”.
Sempre foi inteligente, mas desde pequeno não possuía modelos. Sua mãe quase sempre estava ausente, seu pai o subestimava. Nada de carinho, “é coisa para meninas”. A solução era chamar a atenção, e a partir disso, mentir. Tentava fazer com que sua vida se tornasse interessante aos pais. É claro que não funcionava, e ainda era pior quando caía em contradição e era pego mentindo. Porém, isso durou ainda algumas décadas.
Na adolescência, não possuía amigos. Era considerado o patife, o bobo. Nenhuma garota, é claro. Chegou a se apaixonar, tentou achar algum meio de demonstrar isso. O resultado foi humilhante, aquele belo rosto, aquelas duras palavras, a imagem demorou a sumir. Decidiu mudar.  Deixou de lado os óculos, adotou um novo corte de cabelo. Passou a dominar alguns hábitos peculiares das pessoas mais populares. Foi aí que interpretou seu primeiro papel. Os garotos populares naquele momento eram os cabeludos.
Após muitas aulas, aprendeu a tocar. Juntou-se a vários outros do grupo e montaram então uma banda. Deixou o cabelo crescer, usava camisas e calças surradas. E foi aceito, não só pelo grupo, mas também pelas garotas. Assim acabou “rolando” sua primeira experiência sexual. A partir de então, algo aconteceu com ele. Percebeu que a saída era ser o que não era.
Alguns anos se passaram, cansou-se. Deixou a banda, cortou o cabelo. Decidiu ganhar dinheiro, pois assim o nível de vida e das garotas subiria. Estudou muito e procurou uma profissão de status; entrou na universidade. O curso era engenharia de computação. Escolhera o que em menos tempo lhe traria lucros. Dentro de alguns anos, tornou-se dono de uma das melhores empresas de softwares. Ficou rico, aproveitou-se de tudo o que o dinheiro poderia oferecer. Foram inúmeras viagens, inúmeros bens, inúmeras garotas.
Mas havia excedido o limite. O seu limite. Não se controlava mais. Seu triunfo e, ao mesmo tempo sua obsessão, era a cada dia ganhar mais dinheiro e a cada noite ganhar mais uma garota. Resolveu dar mais uma guinada. Largou tudo, menos, é claro, sua enorme reserva financeira. Fez uma plástica. Pintou o cabelo.
Decidiu que seria pai de família. Resolveu dar tudo o que não teve ao seu rebento, que com certeza seria diferente dele. Seria feliz. Entrou em um curso para gestantes, pois somente assim poderia interpretar convincentemente o papel de pai, já que nada sabia sobre. Fora o espanto das grávidas, tudo aconteceu como ele planejava. Quase pôde sentir o feto! Ah, como seria bom ser uma mulher nesse estado!
E por falar em mulher, precisava de uma. A mãe. O grande abrigo. As asas protetoras. Deveria ser uma fortaleza, com aquele ar doce, fala mansa. Deveria ser alguém que permanecesse dentro de casa. Nada de mulher independente! Mas, onde?
Foi tomar uma ducha. Os pensamentos corriam, os olhos estalavam. O que fazer? Já conhecera tantas mulheres! E até as que manifestaram em algum momento o instinto maternal não serviriam. A mãe de seu filho, afinal, não possuiria aquele cheiro de lascívia.
O sabonete corria entre seus dedos como o tempo. Já era tempo. Já passara do tempo. Esperou a água limpar toda aquela sujeira. Água fria, depois gelada. O tremor.  Não seria qualquer uma. Seria especial, seria a mãe que ele não teve. Havia a afeição da avó, mas a sensação de ter sido amado durou apenas alguns anos de sua infância. Enxugou-se com uma das toalhas, começando pelos pés, depois pernas. Seu sexo entumeceu-se, não tanto pelos movimentos da toalha, e sim, por sua grande capacidade de resolver os problemas da melhor forma possível! Nada, nada mais grandioso! Seu corpo todo enrijeceu-se diante da constatação de tal idéia. Deu então uma virada de 180 graus, olhou-se no espelho e encarou, por trás de sua face enrugada, o rosto doce da mãe perfeita.

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