terça-feira, julho 05, 2011

O Viajante


O viajante

Por mais que tentasse, nada preenchia o vazio no qual se encontrava a sua alma. Apesar de ser uma pessoa com uma vasta experiência de vida, era como se, a cada viagem, nada antes tivesse aprendido. Muitos o menosprezavam, por não exercer qualquer função honrosa. Ele era um viajante. Seus proventos às vezes eram fruto da venda de objetos para antiquários, outras vezes, produto de boas jogadas em algum cassino clandestino, ou ainda, de trocas. Já passara por situações difíceis, insólitas, inesquecíveis. Mas mesmo assim, a cada novo quarto de motel, a cada cama, a cada espelho, era como se nada tivesse antes conhecido, como se nem mesmo tivesse conhecido a si mesmo, como se estivesse na companhia de um estranho; os momentos em que estava só tornaram-se cruéis, desesperadores. As companhias eram frívolas, o quarto era sombrio e a cada dia sua solidão tornava-se ainda mais severa.  Procurava sempre manter alguma esperança, a esperança de encontrar a si mesmo. Entretanto, a cada dia, a cada noite, a cada minuto se sentia muito mais longe disso.
A cada porta aberta, poderia encontrar uma razão para tanto sofrimento. Sofrimento, pois sentir-se só certamente é a dor mais profunda e insistente da vida. E todos os lugares por onde passava poderiam trazer um possível fim para essa dor interminável, ou pelo menos, um alívio. Mas nada, nada trazia sua serenidade de volta, todos que transitavam pelas ruas, todos que o cumprimentavam, todos nada traziam.
Foi quando, numa manhã como tantas outras, ele acordou sentindo-se livre. Tal qual o vento, que possui o poder de visitar lugares diferentes, que pode tocar nos homens a qualquer momento, que pode subir até os céus e voltar, trazer um frescor nos dias quentes ou até mesmo gelar os ossos nas estações mais frias. Sentia-se o próprio vento neste dia. Poderia quase sair flutuando ali mesmo, sem nem ao menos levantar-se. Viu, no alto de sua cabeça, o lustre balançando vagarosamente, e com as pontas dos dedos fez o movimento que o objeto desenhava no teto. Sorriu, como há anos não sorria, um sorriso de criança que diverte-se com sua arte, e sentiu-se à vontade para levantar-se e buscar algo para comer. Não comia já há dias, e seu estômago suplicava por uma fruta suculenta e doce; doce como a vida haveria de ser, suculenta como todos os prazeres já experimentados e como os que ainda viriam a ser. Sentou-se em sua cama, e o quarto já não era o mesmo, ou era e ele nunca se dera conta. O espelho estava ali, mas parecia envolto numa áurea faiscante. Seu corpo, leve, seguiu o caminho de todas as manhãs ao refletor, mas desta vez, o reflexo foi outro, completamente diferente. O rosto, antes castigado pelos sentimentos que o corroíam, agora apresentava linhas suaves; suas maçãs assimilavam-se a maçãs reais, seus lábios davam a impressão de terem sido pintados por um artista, assim como seu nariz, e seus olhos transformaram-se em um par de prismas. Sim, aquele era realmente ele. Após contemplar-se, tomou o caminho do cômodo mais quente da casa. Foi até a cozinha e desconsolou-se. Nada para comer. Mas não, sair naquele momento seria outra descoberta, talvez ainda mais interessante. Pegou seu casaco e saiu, sentindo-se o homem mais poderoso.
Abriu a porta de sua casa. A rua continuava ali, igual, e as pessoas também iguais. Mas não se importava com os outros. Agora ele tornara-se a própria brisa matinal. Viu a banca de frutas, e era como se nunca tivesse visto a beleza e a pureza das mesmas. Rápido chegou bem perto delas, e diante de tanta variedade ficou um pouco indeciso, mas logo fez suas escolhas. A primeira seria um belo melão, com suas cores verdes e amarelas, e a segunda seriam vários morangos, de uma vermelhidão semelhante ao rubro da face de uma garota tímida ao ser beijada pela primeira vez. O vendedor entregou-lhe os pacotes e disse o valor. Pagas, ele as levou para sua morada para apreciar a delicateza da tez de cada uma delas, e não deu importância alguma à rudez do vendedor. Agora seria sua vez de admirar a gentileza da vida.
Ao chegar, dirigiu-se à cozinha, agarrou uma faca e, contemplativamente, cortou uma pedaço do melão e vários morangos. Dispôs ambos em um prato fundo e iniciou o ritual. Ingeriu-as, deliciando-se com o sabor de tão divinas frutas como se aquele fosse seu último desjejum. Nunca antes tinha sentido tão intensamente o prazer de comer, e, ainda mais maravilhado, percebeu que sua vida fora, nos últimos 30 anos, apenas um amontoado de tentativas de fuga. Ele fugia de si mesmo, dos outros e dos simples prazeres da vida sem nem perceber. E verdade era que a vida era simples demais, assim como suas melhores coisas. Uma fruta, o vento, o pôr-do-sol. Um beijo, o toque. Uma música, o silêncio.

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