Porque, quando criamos, vivemos. Porque "todo símbolo tem uma carne, todo sonho uma realidade" (O. Milosz)
domingo, dezembro 13, 2009
Balanço do Ano
Reli trechos, pedaços esparsos de uma escrita que se consumiu
Revi cenas de um passado que se congelou no tempo
Repensei o que já havia pensado mil vezes, mil vezes mil
Retomei um ponto de vista já gasto, usado, roto, um velho sem lar que me acompanha.
Busco a novidade, o que a areia levou não volta
Persigo os sonhos, nuvens de esperança que contam uma história
Quero me perder, consumir-me por alguns minutos em chamas de fogo
e depois disso encontrar comigo mesma, nova, repleta de novos sonhos, de novas faíscas de luz.
Para vocês todos, um Novo Ano cheio de novidades, de sonhos e fogo!
sábado, dezembro 12, 2009
Os sonhos das árvores
Fora uma tempestade devastadora aquela. As árvores grossas, com suas copas enormes, foram deixadas caídas pelo vento cortante e feroz. Fernanda teve pena delas... "as sábias árvores", pensava ela, que estavam lá há tantas décadas e que presenciaram o nascimento e a morte de vários entes de sua própria família, que foram suas confidentes em muitas ocasiões e participaram de várias brincadeiras feitas por ela e pelos primos. Não teve vergonha de deixar as lágrimas escorrerem pelas maçãs do rosto. Chorou por algum tempo, ressentida como se tivesse perdido suas amigas mais íntimas.
terça-feira, dezembro 08, 2009
Friedrich Nietzsche
"Uma alma que se sabe amada, mas que por sua vez não ama, denuncia o seu fundo: vem à superfície o que nela há de mais baixo."
"As vivências terríveis fazem-nos pensar se o seu protagonista não é, ele próprio, algo de terrível."
"Certos pavões escondem de todos os olhos a sua cauda - chamando a isso o seu orgulho."
sábado, dezembro 05, 2009
Minha oração - no dia do meu aniversário
Sempre gostei muito de aniversários, sempre! Quando pequena, não ganhava presentes caros, nunca! Mas a sensação de ser a "dona" do dia já valia qualquer presente... isso durou bastante até... hoje já não sou tão feliz quanto era nessa época.
sábado, novembro 21, 2009
AEon Flux e outros pensamentos
A vontade repentina de escrever não é usual. O processo criativo leva alguns dias, pois primeiramente trabalho as ideias nos momentos ociosos do dia, escrevo um rascunho (em folhas de sulfite que encontro na coordenação do colégio, em guardanapinhos dos botecos) para, só depois de algumas alterações, publicar. Alguns poucos textos foram criados sem planejamento - esses geralmente inspirados por uma música tocante ou por um filme recém-assistido (alguns por raiva mesmo, pura e simplesmente). Eu poderia ter criado uma narrativa a partir de Aeon Flux, mas seria pretensão demais, então resolvi comentar minhas impressões assim, humildemente.
terça-feira, novembro 17, 2009
Madrugadas (continuação)
Naquele dia ele chegou dez minutos atrasado para o trabalho. Isso talvez não fizesse diferença alguma para a maioria das escolas, porém, onde trabalhava o atraso do professor era punido com "pontos negativos", e ele já possuía dois. Mais um e, inevitavelmente, seria advertido de maneira severa. Regras devem ser respeitadas, afinal de contas. Ao chegar, descontou sua raiva em cima dos alunos obrigando-os a dar voltas em torno do ginásio, coisa incomum. Mesmo a raiva era incomum, nem ele mesmo estava entendendo o que sentia. Sabia que algo parecia crescer dentro de si, e entre um grito e outro, com uma das mãos em torno da cintura, procurava relembrar o sonho que tivera na noite anterior. Os flash backs apenas aguçavam sua curiosidade.
Lembrava-se de uma festa e um hospital, e de um médico também. Mas o que havia acontecido? As horas passaram, o sinal bateu e o alvoroço era geral. Crianças e adolescentes correndo de um lado a outro, comendo seus sanduíches ou as frituras medonhas da cantina. Ele apenas tomou um café forte e quente, muito quente. Queimou a ponta da língua e blasfemou. Lembrou-se que sua esposa estava também no sonho. E usava um vestido marrom-glacê, terrivelmente atraente. Nem em sonhos ela poderia usar aquele vestido, pensou ele, tomando o café de uma vez só. Agora a garganta toda queimava, o sinal gritava e sua mente procurava resquícios de um sonho fragmentado pela memória. Depois de mais duas aulas para a oitava série foi para casa. Lá chegando, com urgência vasculhou o armário da esposa à procura de um vestido marrom-glacê.
E lá estava! Um vestido da mesma cor... mas diferente. Não era tão justo quanto o do sonho. Ele lembrou-se do quanto custara caro na época, há aproximadamente três anos. Comprara numa botique chique. Era aniversário dela, mas estavam brigados (não lembrou-se do motivo). Porém, sentira vontade de aparecer com algo diferente, nada de rosas ou chocolates. Chegara atrasado ao shopping e quase se deparou com a loja fechada. O lugar era enorme, as atendentes finas e elegantes e o público, em peso, feminino. Lembrou-se daquela sensação: como um estrangeiro numa terra estranha. Acabara levando para casa aquele vestido que agora escorregava de sua mão.
Aquilo era cetim. O vestido do sonho parecia seda e, se não fosse algum jogo entre sua memória e sua imaginação, estava certo de que também era transparente. Olhou para o teto, respirou fundo, olhou de volta para o vestido. Suspirou alto e guardou-o. Queria esquecer o sonho, voltar à rotina. Mas aquela sensação... talvez estivesse apenas impressionado. Perguntou-se se um sonho poderia enlouquecer um homem. Não sabia.
Horas se passaram.
O tempo todo tentava esquecer suas paranóias, mas aquela sensação esquisita teimava em voltar a perturbá-lo. Lavou toda a louça da cozinha para afastar os pensamentos negativos, porém de nada adiantou. Procurou então entreter-se com um filme, e durante duas horas a manobra deu certo. Não conseguiu terminar de ver os créditos finais e então, desesperado com aqueles sentimentos desconcertantes e insistentes, resolveu sair e fazer uma caminhada. Pensou que talvez pudesse até comprar alguns pães e frios para comer na hora da ceia. Concordou também que seria sensato conversar com a esposa sobre o estranho sonho que tanto lhe assombrava durante as últimas 48 horas.
Sete horas da noite. O sol se escondia cada vez mais no horizonte. Os tons alaranjados e rosados do céu o fizeram parar para assistir aquela cena tão banal e ao mesmo tempo tão fantástica. Um pássaro voou baixo e se enfiou entre os galhos de uma árvore próxima. Com certeza, pensava ele, agora a ave iria descansar suas asas, pois o domínio da noite e sua escuridão era certo e estava próximo. Agora era hora de repousar e esperar até que o sol, cintilante, retomasse o seu posto, tão efêmero quanto o da própria madona das trevas.
Chegou em casa e já era noite. Ruminava mentalmente a conversa que teria com a esposa assim que chegasse. Ela, certamente, já teria ligado para meio mundo à sua procura. Mas só o que pensava era em resolver logo essa insana situação. Abriu a porta, entrou. Na sala, jogadas no chão e amontoadas no centro de mesa, diversas agendas telefônicas. Vindos da escada, os passos apressados da mulher. Ela o fita por alguns segundos e corre para abraçá-lo, e o que se ouvia entre alguns suspiros de alívio era "meu amor, que que te aconteceu?" e "queria me matar de preocupação?".
Dois minutos depois estavam sentados no sofá e ele a fitava. Ela já não era tão jovem. A vida também não fôra tão fácil assim. O casamento, a filha, o trabalho. Preocupações. Há quanto tempo não se divertiam? Tentou lembrar-se da última vez que saíram para beber e dançar... não conseguiu. É que, com o tempo, certos interesses acabam ficando em segundo plano. Ou terceiro... ou acabam sendo deixados de lado. A mensalidade da escola, a compra do mês, o seguro do carro, tudo isso pesava mais na balança. Não se tornara possível gastar o pouco que tinham para reencontrar os velhos amigos em velhas sessões de nostalgia. Pensando melhor, talvez estivessem velhos demais para isso. Talvez o problema não fosse financeiro.
A esposa questionou-o, queria saber qual era o problema. Disse que ele estava quieto demais, perguntou-lhe em que mundo estava. Os olhos dela agora serviam como espelhos e a imagem que via não lhe agradou. A imagem de alguém que nunca quisera ser. Por fim, resolveu contar-lhe sobre o sonho que tivera. Detalhe por detalhe. Quando terminou a narrativa esperava por consolo, afinal, até aquele momento pensava estar louco. A esposa, num espasmo, desatou a rir. "Deixa disso, meu bem, era só um sonho. Acho melhor a gente sair hoje, ficar bêbados, porque na segunda a Bibi volta." Alívio. Respirou e riu também. Mas riu um riso forçado, como quando rimos de uma situação desesperadora. Abraçaram-se e subiram para o quarto.
domingo, novembro 01, 2009
Um café requentado e um mantra mal recitado
Zonza de sono, caminhou em direção ao vaso sanitário. A louça gelada a fez despertar de uma vez. Bem que poderia inventar uma desculpa para não ir trabalhar e dormir mais algumas horas. Quem sabe até a hora do almoço... mas não. Não iria conseguir dormir novamente e poderia ainda se arrepender, pois sua consciência não iria deixá-la em paz. Ligou o chuveiro. A primeira rajada de água estava gelada e então blasfemou. Passados vinte minutos, não queria mais sair debaixo daquela ducha tão aconchegante. A temperatura da água se assemelhava à temperatura de seu edredon, o vapor a divertia - rabiscava com o dedo no vidro do box vários corações, pirulitos e estrelas -, o perfume do xampu a relaxava ao mesmo tempo em que o sabonete a acariciava. Naquele momento estava no paraíso. Suspirou. O tempo passava, ela precisava sair do banho. Desligou o chuveiro, se enxugou e, saindo do banheiro, sentiu o ar mais frio. Vestiu-se rapidamente, desceu as escadas e tomou um café requentado no microondas, uma droga. Saiu de casa.
Ponto de ônibus: nenhum chega. Impaciente, acende mais um cigarro. Dentro de vinte minutos teria que entrar na sala de aula e até aquele momento nenhuma condução aparecia. O frio e a chuva só pioravam a situação e para relaxar um pouco ela mentalizava um mantra. Vira na televisão uma reportagem sobre budismo dizendo que em situações adversas o tal mantra poderia ser recitado. Budismo em escala global. Palhaçada!
Apesar de saber que talvez não adiantaria muito, iniciou uma sequências de "ows" desafinados e riu sozinha. O vento, inexplicavelmente, tomou outra direção e a chuva passou a molhar toda a sua calça jeans. O tênis já estava encharcado, assim como sua meia. O próximo passo seria ela ficar gripada, o que não era tão ruim, pois poderia faltar ao trabalho sem se sentir uma pessoa desonesta. Mas antes que ela pudesse se imaginar quentinha embaixo de seu edredon, o ônibus chega.
Sentou-se no primeiro banco que viu. Olhando pela janela, ficou a divagar sobre a vida, como todos os dias fazia. Nunca chegou a conclusão alguma, possuía apenas suas premissas. Mesmo suas certezas eram incertas, e ela sempre refletia sobre a falta de controle que possuía sobre seu destino. Entretanto, nessa manhã concluiu uma ideia, finalmente: não havia certeza alguma na vida, e era essa a graça. Se tudo fosse tão certo não haveria risco algum e a vida não teria suas surpresas.
Deu sua aula, corrigiu as provas de seus alunos, discutiu com os mais interessados. Sabia o que estava fazendo. Ali era o seu mundo, o seu lugar. Não teria que se preocupar com o tempo, com as contas, com tudo aquilo que não podia controlar. Tudo ficava sob controle a partir do momento em que começava sua primeira aula do dia. E isso a deixava satisfeita.
Seis da tarde. Mais um ônibus. Inexistência de nuvens no céu, que já ficava alaranjado. O pôr-do-sol a fazia sentir-se mais viva, a noite a fazia sentir-se mais feminina. Mas antes de chegar em casa, espirrou. É, provavelmente não iria trabalhar no dia seguinte...
terça-feira, outubro 13, 2009
Frenesi
segunda-feira, outubro 12, 2009
Santa Ingenuidade!
Há algo que se aprende na vida adulta: perder a inocência. Ao contrário do que Fellini acreditava, me parece que o mundo hoje não aprecia em nada a ingenuidade... há quem ainda grite a plenos pulmões a favor de uma vida menos maliciosa, mais infantil - e veja, nesse sentido, não me refiro à irresponsabilidade ou à imaturidade, mas à inocência -, mas o que percebo é o contrário. Triste, mas verdadeiro: perdemos nossa inocência há muito tempo.
Ao nosso redor há todo tipo de maldade. Não é necessário procurar muito, facilmente encontramos no ponto de ônibus, ou nas escadas rolantes do shopping, às vezes onde nunca imaginaríamos. "Maus" são esses indivíduos que carregam consigo o peso de suas existências, que se sentem pormenorizados pelos que brilham mais, pelos que são mais felizes. Mentirosos, frustrados, covardes, gananciosos, rudes, pessoas cuja feiúra não se vê por fora.
Estou cansada hoje. E minha inspiração se esvaiu, como a areia das ampulhetas, à procura de um tempo que não volta mais.
domingo, setembro 20, 2009
Sonja - She-Devil with a Sword!

Minha inspiração, ao escrever Sareh, foi essa imagem. Red Sonja, a guerreira hirkaniana mais célebre dos quadrinhos. E, meninas, essa mulher merece nosso respeito, apesar de ter sido desenhada por homens, apesar do apelo ao corpo feminino perfeito (na opinião deles!), pesquisem sobre a história dessa guerreira! Vale a pena!

sexta-feira, setembro 04, 2009
Sareh
Sareh. Era uma caçadora, tanto de recompensas quanto de animais e homens. Suas armas eram simples, entretanto sua força e agilidade deixavam qualquer desafiante extenuado. Muitos procuravam-na para oferecer-lhe tarefas impossíveis, pois sua fama se estendia das terras planas às colinas bárbaras. A busca pelo desconhecido, a batalha e o reconhecimento a inebriavam, era isso tudo o que a excitava.
Mesmo com tantos boatos sobre sua idade avançada, as formas de seu corpo denunciavam juventude. Os mais idosos adoravam contar histórias sobre ela nas reuniões dos anciãos. A mais famosa era a do elixir da juventude. Certa vez, numa de suas viagens a terras distantes, Sareh encontrara um elixir misterioso, e sem qualquer pista acerca de quem seria seu possuidor, levou-o ao velho alquimista de sua aldeia. Este, maravilhado e incrédulo, informara-lhe que se tratava de uma mistura milagrosa: se usado com cautela, estenderia o tempo de vida de quem o possuísse; caso contrário, poderia encurtá-lo. A partir disso, os anos não mais deixaram marcas em seu rosto, nem em seu corpo bem torneado pelas lutas de espadas. Muitas histórias eram conhecidas do povo da aldeia. Fora dali, suas aventuras se espalhavam por outros que a conheceram de alguma forma, que tiveram a honra de oferecer-lhe estadia por uma noite, dar-lhe o que comer ou beber.
Sareh pensou que poderia, pela primeira vez, estar perdida. O horizonte trêmulo não mostrava indícios de qualquer tipo de civilização ou mesmo qualquer sinal de vida. Apenas a morte a rondava, mas isso de forma alguma a assustava. Não iria voltar sem o diamante, essa era sua certeza. A dor era insuportável, mesmo para uma guerreira como ela, que já lutara com homens gigantescos, com animais ferozes e até mesmo seres que só em imaginação a maioria dos homens conseguiria desafiar. Apertava seus olhos e rangia os dentes a cada passo, mas o brilho ofuscante do sol lembrava o grande diamante Haijink, seu objetivo. Escondida por séculos nas pirâmides antigas, protegida por guardiões e magia negra, a joia lhe traria a fortuna que tanto cobiçara, pois seria muito bem paga pelo serviço. Havia uma lenda que dizia ser o diamante o portal para o Outro Lado, onde os mortos poderiam ser ressuscitados. De acordo com outra, que serviria como a Chave do Tempo e assim seu possuidor teria o poder de manipular o presente, o passado ou mesmo o futuro. Sareh não contava com isso. Muitas dessas histórias contadas pelos anciãos não passavam de entretenimento ao redor de fogueiras para homens ou rapazes em busca de algo em que acreditar. Ela mesma ria copiosamente quando lhe perguntavam se era imortal.
Não acreditava na imortalidade, nem em poderes ilimitados. Certa vez, numa luta contra um ciclope, antes deste desfalecer, arrancou-lhe o olho. Todos apostavam que se Sareh queimasse numa fogueira o olho de um ciclope, como a lenda dizia, se transformaria numa deusa. Ela não perdeu tempo, organizou todo o ritual e chamou os anciãos para que estes vissem que tal sandice não passava de uma história. Na noite seguinte, mesmo assim, as histórias sobre ela e o olho rendiam diversas teorias e muitos queriam conhecê-la para que ela realizasse seus desejos, como se realmente fosse uma divindade. Depois disso, desistiu de levar o esclarecimento ao povo. Concluiu que o poder das lendas era imensamente maior que qualquer interesse pelo conhecimento racional.
terça-feira, julho 28, 2009
Luzes da Cidade
O vidro do ônibus possuía uma tonalidade escura, e ela enxergava a cidade com uma luz distinta. Era final de tarde, o sol já não estava alto, o que já conferia à luminosidade um pouco de escuridão. Mas pelo vidro ela via o grande rio, as calçadas, as pessoas, tudo com aquele tom levemente pesado. Era mesmo diferente, como nunca havia visto. Talvez fossem suas idéias, que também tentavam adaptar-se às mudanças de sua vida. Resolvera dar prioridade aos assuntos de maior urgência, não aos que, embora importantes, não eram de suma importância. Assim, vendo a transformação de um elemento tão trivial – no sentido de sempre estar lá, de ser tão essencial que, aos olhos mais desatentos, parecia nem existir –se sentiu estranha. Que luz era essa? Tornava-se energizante ao iluminar os arvoredos, e deprimente ao tocar as paredes cinzas e rotas dos prédios e fábricas. Ela pensava que esta luz não poderia chegar e ela, pois se assim acontecesse, a escureceria ainda mais, a faria também deprimente.
O ônibus então sai da cidade. Chega a uma rodovia cercada de árvores, o resto de uma antiga mata. A rodovia assemelhava-se a um facão, que havia cortado a mata, machucando-a, para passarem automóveis envenenando-a com sua fumaça fétida. As árvores também estavam mudadas. Pareciam entender que ela também temia perder sua luminosidade. Mas, a um certo momento, ela parou de pensar na triste tonalidade da luz filtrada pelos vidros escuros do ônibus e procurou sentir a paz que emanava daquele verde, daquelas árvores tão antigas; estas também tentavam transmitir sua sabedoria, sua experiência com o elemento humano durante os séculos. Ela então pensou que tudo passaria, que era necessário viver mais, deixar o tempo realizar seus feitos. E deixar a tristeza passar.
Havia mais gente no ônibus. Ela ouvia, sozinha, as piadas e os risos daquelas pessoas. Alguns acabavam de sair do trabalho, outros da faculdade. O sol começara a se pôr, a luz se tornara mais alaranjada. Como gostaria de estar no lugar de um deles! No lugar de um daqueles que riam, contando histórias engraçadas sobre situações cotidianas. A tarde acabava para a noite iniciar, e a noite que estava por vir a fazia ainda mais melancólica. Não haveria quem a esperasse em casa, não haveria alguém com quem conversar, contar suas piadas, as situações engraçadas do cotidiano. Só haveria ela e alguns rostos sempre lembrados, algumas palavras ditas e não ditas.Lançou-se aos pensamentos deprimentes; lembrara-se de tempos difíceis, quando a esperança era um fio quase inexistente que sustentava a sua vontade de continuar. Tudo aconteceu tão rápido que não houve como tragar tantas mudanças. Mudanças... como é espinhoso o seu caminho! Como é doloroso adaptar-se às transformações. Para ela, todas as transformações deixaram cicatrizes, porém, sentia-se ainda machucada. Era triste olhar as marcas e deixá-las de lado, acreditar que com o tempo as marcas não mais trariam a dor, e sim lembranças, apenas lembranças. Talvez se chorasse, tudo seria mais fácil, a agonia poderia diminuir, as lágrimas, como diriam os poetas, poderiam lavar sua alma. Alma consternada, alma sem sossego. Suja, velha, rancorosa, triste alma.
A noite já era densa, havia estrelas no alto dos montes. Tentou desviar os pensamentos para contemplar as pequenas luzes faiscantes, cheias também de uma terna tristeza. Um desespero crescia dentro dela, parecia possuí-la aos poucos, mas progressivamente. As lembranças não a deixavam, o momento pelo qual passava era tão tortuoso quanto a estrada, sua garganta ardia, ela queria chorar. Mas o choro não aconteceu, e a desesperança aumentava. Qual seria a saída, como isso poderia parar? Sua cabeça dava voltas, as pessoas riam. As estrelas piscavam, não havia lua no negro que cobria a terra. Sua vontade era de gritar, gritar o mais alto que podia. Mentalizava seu grito, pois sabia que nem isso conseguiria. Todos no ônibus emanavam tranquilidade, e talvez felicidade. A felicidade dos que ignoram os males, dos que vêem uma saída sempre, dos que maquiam a realidade. Ela não, nunca mais possuiria uma fagulha dessa felicidade, pois a realidade mostrara-se cruelmente a ela. E sentia-se mal por não ser simples, como todos no ônibus.
sexta-feira, junho 19, 2009
Editorial
Parada para um humilde editorial.
Eu tinha em mente escrever um texto mais teórico sobre a nostalgia, mas acredito que irei, mais uma vez, cair num relato autobiográfico. Nostalgia é aquele sentimento estranho que nasce quando relembramos, com muito carinho, de certas fases de nossa vida, de certas pessoas, de certos lugares, de certos aromas... enfim, uma mistura de saudade com reminiscência. Eu sou uma nostálgica, admito. E acho até que já escrevi sobre isso alguma vez.
Vivi a década de oitenta, e por mais que, por causa de meu vício por filmes e músicas dessa época, eu tente reviver pequenas frações de experiências passadas em minha infância, não conseguirei. O tempo não volta. Mas sou persistente, e por causa dessa minha característica, às vezes consigo por poucos instantes relembrar e sentir, com 31, o que senti com 07,08 anos. Reviver não posso, mas como seria bom poder entrar no De Lorean...voltar lá para trás...
Lembro que nós vivíamos numa época sem luxo algum. Hoje posso ir ao mercado aqui do lado de casa (que antes não existia) e comprar uma barra de chocolate só para mim. Na época, nós fazíamos uma compra por mês, e pouco espaço do carrinho era reservado para os doces e demais besteiras que quiséssemos comprar. Mesmo assim, sinto saudades. Na escola, as crianças (é, elas podem ser mesmo muito malvadas) olhavam para os pés das outras para identificar a classe social. É claro, a marca do tênis. Os meus eram tênis bem baratinhos, que duravam pouco, mas eu usava até a sola quase descolar. Às vezes sentia raiva disso, porque, como qualquer outra criança, eu gostaria de poder me sentir incluída. Resultado: criei minha personalidade tendo como referência todos aqueles que também não tinham um tênis de marca. Comecei a ouvir rock, vestia roupas rasgadas. Quando cheguei ao ensino médio, já nem me preocupava com nada nem ninguém. E, mesmo assim, sinto falta daquele tempo.
Minha escola era enorme. Estudei no Sesi, pois meu pai sempre foi e ainda é torneiro mecânico - com muito orgulho. Por causa dele cresci com meus ideais esquerdistas, até quando a esquerda deixou de sê-la - não irei discutir política hoje, então, dando continuidade ao relato: há uma mega indústria de metalurgia aqui em minha cidade, e na década de oitenta ela passou por fases de grande ganho de capital, como também muitas crises. Esclareço isso porque, lá no Sesi, convivíamos com os filhos dos funcionários desta indústria, desde os faxineiros até os gerentes, o que significa que minha escola foi um microcosmos da própria sociedade. Engraçado lembrar que os filhos da classe desprivilegiada comiam a merenda escolar (geralmente sopas, mingaus e, em dias especiais, pão com carne moída... e era bom hein!) enquanto os filhos da classe abastada traziam lanche de casa. Eu levava lanche de casa às vezes. Isto me traz à mente a primeira lembrança que tenho da escola.
Entrei no pré em 1983. Tudo era muito novo e estranho. A professora, Tia Lu, era uma mulher de 30 e poucos anos, que descaradamente dava mais atenção aos filhos da classe abastada. Eu tinha 6 anos, e levava comigo minha lancheira, que era da Moranguinho... meus pais pagaram bem caro por ela naquela época, por isso a bendita teve que durar mais uns dois anos. Enfim, recreio, abro minha lancheirinha, com suco Ki-Suco de morango e um pão com mortadela. O pão estava meio amanhecido, então eu mordi com força mesmo, e até descer pela garganta tive que fazer uma baita ginástica maxilar... De repente, vejo um homem muito parecido com meu pai me olhando lá de fora, atrás de um pilar. Dei tchauzinho, e era mesmo ele, que horas mais tarde, em casa, deu uma bronquinha em minha mãe por ter me dado um pão tão duro... Poxa, meus olhos lacrimejam agora.
É por isso que sou uma nostálgica inevitável e irremediável. Lembrar faz bem para a alma, e a minha é tão leve que às vezes penso que ela pode se desgrudar de meu corpo facilmente!
sexta-feira, junho 05, 2009
Poema em Prosa
Poema em Prosa
Enquanto abria meus olhos, ainda no limite entre o sonho e a realidade, sentia sua presença ao meu lado, sentado, na beira da cama, seu olhar de gato fixo e enigmático. Enquanto tomava meu banho matinal, você me secava com o calor de seu corpo sob a água, fumaça. Enquanto me vestia, você me despia despudorosamente.
Saí de casa a tempo, não perdi meu ônibus. Você correu comigo. No trabalho a rotina de sempre, a vida corria também, e você me acompanhava. No almoço, enquanto a comida era servida, falei sobre você e você se fez de desentendido, acho até que ruborizou. Eu imaginava nós dois deitados naquela mesa enorme, entre pratos cheios e vazios, você entre minhas pernas... mas você não estava ali.
Um menino rapaz tomou seu lugar ao meu lado no metrô, eu cedi o meu a uma senhora idosa. Nossos dedos poderiam ter se tocado quando segurei com força o apoiador para não cair naquela parada brusca. Nossos olhares se cruzaram pela milésima vez naquela tarde.
Em casa, me distraí. Não te dei bola. A família reunida para o jantar, as histórias sobre o dia que passou, piadas, risos e conselhos me tomaram algumas horas. Quando sentei-me no sofá para assistir o jornal você me pegou desprevinida com aquele seu sorriso sem-vergonha. Mas estava decidida a não ir para a cama até que você desistisse de mim.
Entretanto, a pele, o cheiro, a saliva e o suor me queimavam por dentro. No meio dos comerciais disse boa noite a todos. Entrei em meu quarto, fechei a porta, abri as janelas. As estrelas como únicas testemunhas daquele sonho que sonhava acordada. Estendi o edredon, e debaixo dele você já me esperava, numa ânsia digna de Eros.
sexta-feira, maio 01, 2009
Nas Últimas
Nas Últimas
Uma mulher de quarenta e cinco anos já sem qualquer esperança de mudar seu destino. Não iria ganhar na loteria, não iria caminhar aos sábados de manhã, nem sair para um happy hour no final de semana. Não decoraria seu apartamento, não levaria o cachorro ao veterinário. Não faria compras no shopping, não chamaria as amigas para seu chá de cozinha. Não veria seus traços na face rosada de seu filho, não iria às missas aos domingos. Não faria amor apaixonadamente, não provaria sushi pela primeira vez. Talvez nem pudesse ver os primeiros raios do amanhecer do dia seguinte.
Tudo por causa de um único momento em que perdera o controle. Um único momento de fúria e lá estava ela, há dois anos, a cada segundo, na espera pelo fim. Injeção letal por ter assassinado aquele monstro. Foi uma pena não ter provado que ele a violentava toda noite, que ele minava, a cada vez que entrava por aquela porta de madeira rachada, suas mais íntimas fantasias e sonhos. Ela estava agora a caminho da morte por ter livrado o mundo de uma maldição, de um castigo. E aceitava sua sina, afinal, o que alguém poderia fazer por uma alma tão pobre, tão à parte da sociedade?
Os restos de suas posses, que agora não passavam de uma folha de papel e uma caneta hidrocor vermelha, se encontravam em cima de sua cama. Passava horas desenhando paisagens de forma bem infantil, e naquele momento tentava criar uma casa escondida em meio às colinas iluminada pelo luar. O vermelho não condizia com a imagem que formava em sua mente. Aquele único passeio que fizera, há muito tempo, com seu amigo de infância, ainda estava ali, guardado por algum milagre. Conseguia até sentir o cheiro do orvalho se formando com o sereno da noite. Uma noite gélida, mas que talvez traduzisse o que, para ela, fosse a felicidade.
O céu cintilava, a poeira das estrelas parecia cair sobre suas cabeças. A lua em sua completude, a grama escura que roçava sua pele feito veludo, tudo estava perfeito. Jovem, ainda tinha o costume de cultivar esperanças de um dia poder fugir daquela cidade tão pequena, tão medíocre. As pessoas a olhavam com desconfiança, nojo e medo. O único que não a maltratava era Toninho, o menino seco que morava perto do buraco onde ela vivia. Ela praticamente obrigou-o a seguí-la, prometendo-lhe um pedaço de algo na janta. Juntos então admiravam aquela pintura noturna. Nem ao menos tinham noção do que seria arte, mas para os dois jovens tão humildes, aquela noite tão bem desenhada lhes deu tanta paz no coração e tanta alegria quanto uma pintura da mais fina expressão artística poderia oferecer aos olhos dos que a apreciam.
Agora não poderia mais deixar-se às divagações. O homem com as chaves da cela chegava, a passos lentos e pesados. Sabia o que viria a seguir, e mantinha em sua mente as sensações daquela linda noite de agosto. Poderia sentir o gosto das frutas silvestres que comeram durante toda a madrugada, da água gelada que tomaram do córrego que cortava as duas colinas verde-escuras. Sentia o cheiro da liberdade entrando pelas narinas enquanto o guarda algemava suas mãos. A cada passo, lembrava-se das risadas que deram ao perceberem que a noite acabava e estavam sozinhos ainda. Que viviam aquele momento, que nada ali lhes faria mal. Sentou-se naquela cadeira fria lembrando das estrelas cadentes que viu e dos pedidos em vão. E com um sorriso em sua face tão marcada pelas amarguras da vida, relembrou os primeiros raios de sol que a aqueceram na mais perfeita noite que já teve, e deixou-se levar pelo destino.
domingo, abril 12, 2009
Um Tapete Muito Caro para a Morte
Fim
terça-feira, março 31, 2009
Apologies
Apologies
Para todos os grandes amigos que se dispoem a ler este humilde blog, peço desculpas pela demora... tenho uns quatro contos em acabamento ainda, não publiquei o final de Madrugadas, nem de A Última Criança, que eu me lembre. Vou terminar "Um tapete.." (logo abaixo está o segundo capítulo!), prometo! Faltou-me inspiração e tempo, para ser franca.
Agradeço de coração a vocês que me escrevem de vez em quando... este é meu incentivo. Quem me conhece sabe que eu adoro ler e escrever, mas tenho um espelho de auto-crítica bem grande em casa... e na maioria das vezes acabo não publicando por isso. É, complexo de inferioridade, coisa de anos.
Quanto à temática do blog, prefiro não me ater a isso. Cada vez que escrevo tento expor as entranhas de alguém, procuro não ser repetitiva (apesar de já terem me falado que escrevo muito sobre casais que não dão certo, mas eu discordo...rs )
Ah, não estou ainda usando as novas regras ortográficas... vou escrever sobre isso ainda. Que falta do que fazer, hein, galera da Academia??
Enfim, muito obrigada de novo! Espero poder escrever com mais constância! Ultimamente as aulas me consomem, as provas me sobrecarregam, as costas arqueam, mas escrever é como fazer terapia, me alivia. Só queria poder escrever bem o suficiente para que meus amigos consigam se identificar com essas criaturas doidas que sofrem, que se machucam ( e machucam os outros), que vivem.
É isso!
Um Tapete Muito Caro para a Morte
"Um tapete muito caro para a Morte"
(parte II)
Ancorou-se na batente da porta, os olhos lacrimejaram, seu estômago parecia petrificado. Em um único gesto afastou o rapaz e entrou no elevador. Seus olhos saíram do chão e num único segundo encontraram os do jovem, e seu olhar talvez dizesse mais que qualquer palavra. A porta de aço fechou-se e Frederico finalmente estava só. Sua garganta ardia. A sede era sim de justiça, mas ainda maior era sua vontade de engolir algo que o acordasse, ou que acordasse nele.
O lobby do hotel ficava no subsolo, e o bar era iluminado por luzes vermelhas, algumas delas piscavam. Não contou os passos que faltavam para chegar ao barman, entretanto, cada vez que seus pés encostavam o chão, sua garganta secava um pouco mais. As pessoas que riam, ao vê-lo adentrar o bar, repentinamente se transformavam. Os rostos se tornaram hostis. Frederico precisava muito daquele whisky on the rocks.
Ao sentar-se num daqueles bancos altos, fitou o atendente. Fez o pedido e, já preparado, aguardava pela bebida sem muita paciência. O barman escondia um sorriso no canto dos lábios, e isto o agradou. Finalmente conseguira uma dose, e o melhor, dupla - cortesia do hotel, foi o que pensou. A garganta já não doía mais, a sede já não machucava. O ar agora parecia invadir seus pulmões violentamente, respirava de forma profunda e pausada, expulsava o ar da mesma forma como se expirasse seus fracassos, como se algo que o ferisse por dentro estivesse saindo pelas narinas. Mais uma dose, por favor!
As luzes vermelhas piscavam cada vez mais rápido, os risos voltavam aos poucos a encher o local de uma fingida alegria. O barman era o único cujo olhar não era decifrável: ao mesmo tempo, acolhedor e irônico. Mas Frederico preferia não dizer palavra. Algo em seu estômago o incomodava, e não era ansiedade. Poderia ser o whisky, não bebia há algum tempo. Depois que sua vida se tornara uma absurda sucessão de dias tediosos, resolvera se anestesiar de outra forma: devorava páginas e páginas de histórias que outras pessoas escreviam.
O último gole caiu como um calcário pontiagudo. Imagens de uma moça linda, realmente linda, se formavam em sua mente. Mosaicos de lembranças remotas, flashes que faziam seus olhos lacrimejarem de tristeza. As luzes vermelhas se misturavam aos espasmos, sangue por toda parte, gritos e risos.
(continua...)